"Falamos muito com os telemóveis, com os computadores, com as telas, com os ecrãs, com os nossos umbigos, mas tememos covardemente a magia do olhos-nos-olhos. No diálogo, a tolerância não é uma consequência, mas um exercício, uma meditação."
Excelências
Sr. Primeiro Ministro
Caros colegas membros do Governo
Ilustres personalidades da vida académica, artística, religiosa, científica, politica, de comunicação e social
Caros convidados
Minhas senhoras e meus senhores
Quando um amigo convida outro para uma amena cavaqueira, como se dizia em português aldeã de um tempo em que a pessoa tinha tempo, e o outro amigo aceita o convite, os dois podem não ter feito grande coisa, mas, certamente, terão evitado grandes males. É imbuído desta fé que começo esta conferência agradecendo a todos quantos atenderam à minha chamada e ao meu chamamento.
Chamada pelo convite, chamamento pelo convívio, pois não há diálogo que em si mesmo não encerre algo de transcendental, algo de uma existencial carência de convivialidade. Duas razões podem explicar ou ilustrar o porquê dessa carência: primeira: se o homem tivesse sido criado para falar a sós, teria nascido com os olhos, os ouvidos, a língua e todo o resto virados para dentro; segunda: sós é uma palavra plural, significando que, desde que a gente queira, o diálogo é uma forma recíproca de escutar. E isto é válido mesmo para falar com Deus. Pois devemos saber que só conseguimos ouvir o nosso interior depois de aprendermos a ouvir o outro. Porque esse próprio eu que nós queremos ouvir dentro de nós, é, no fundo, bem outra pessoa, seja ele o vagabundo que há em nós ou aquele outro eu que nos quer controlar. Esta iniciativa “Diálogos pela Cultura” tem a ver com uma constatação minha, de certo modo inquietante. A Humanidade está a caminhar aceleradamente para uma sociedade de monólogos.
Falamos muito com os telemóveis, com os computadores, com as telas, com os ecrãs, com os nossos umbigos, mas tememos covardemente a magia do olhos-nosolhos. Na verdade, o séc. XXI criou uma global comunidade de ansiosos. Aquele impagável tempinho para uma prosa, para nos discordarmos e gargalharmos, já vai sendo cada vez mais escasso.
E é então que surge a terrível tentação de sempre querermos ter razão, de impormos a nossa visão do mundo ao outro, de estabelecer a nossa própria teoria da felicidade como a única e verdadeira. Algures nos meus amarelados apontamentos de exercício literário está anotado que “ a melhor opinião é duas opiniões”.
No diálogo aprendemos a ser ouvintes e falantes em doses divinamente expressas para não sermos imbecis. No diálogo, a tolerância não é uma consequência, mas um exercício, uma meditação. Discordar e aceitar que a razão é o que menos importa, que o que importa é a equanimidade, é o segredo da paz nas mulheres e homens e no mundo.
Perguntaram-me, por estes dias, para que serve esta conferência. Qual era o objectivo. Ora, eu nem tinha pensado nisso, que o objectivo do diálogo é o diálogo.
O diálogo não serve para nada senão para ser feito. É um pouco assim como o amor. E, no mundo de hoje, precisamos de coisas que não servem para nada, que não dão lucros, não dão lustros, não dão cargos, não dão palcos, mas não dão, simplesmente, nem confusão.Precisamos dessas coisas que só recebem, generosamente, como se recebe a comunhão, um conselho, a bênção ou a visita de um amigo. Nas tiranias e nas ditaduras não há diálogo, há ecos.
O diálogo pressupõe o contrário, um confronto da estirpe das nuvens, de onde primeiro nasce a luz, e depois o som. A falta de diálogo é que engravida as mães de todos os conflitos. Quero, por isso, valorizar e agradecer todos aqueles que, de forma intelectualmente elevada e generosa, aceitaram deixar os seus confortos e suas rotinas para virem aqui partilhar as suas palavras e pensamentos, seus desejos de um mundo melhor. Cabo Verde é uma nação de fragilidades descomunais.
Somos fisicamente fragmentados, territorialmente dispersos, geologicamente caóticos, culturalmente um caldeirão. A diversidade cultural inicial, a nascitura submissa e subjugada, a corrente de ouro de um lado e as grilhetas de ferro do outro, a casa grande aqui pequena e a senzala imensa aqui ao lado, a velha Europa e o Novo Mundo, o branco encardido e o preto de brilhantina, o termo galante e suas acepções, fazem do crioulo forçosamente um ser que só pode construir o futuro no alicerce do diálogo. E o espaço privilegiado do diálogo é pela Cultura, seja à mesa de negociações, seja à mesa do jantar, seja na cama do necessitado, ou na maca do alvejado, seja no altar ou em qualquer outro patamar. Mas diálogo sempre.
A cultura tem esse papel de promover o diálogo, a interação, o conhecimento mútuo, porque a cultura começou no diálogo, não sabíamos nós ainda o que vinha depois. Esta conferência espera pois ouvir, recolher a cultura em toda a sua expressão, complementar o nosso saber com o saber do outro e que nenhuma discórdia seja motivo de exclusão, nem que nenhuma diferença seja motivo de convulsão.
Vejamos o Mundo: da matança mais antiga aos refugiados de hoje, não há um único caso cuja origem não esteja na falta primordial do diálogo, sobretudo, do diálogo intercultural, inter-religioso, interétnico, todos, na essência, a mesma coisa.
Hão-de entender, por isso, a minha felicidade pessoal de vos ver aqui hoje. Espero que, durante estes dias, sejamos capazes de celebrar o estarmos cá, e sejamos capazes de semear a possibilidade de amanhã cá estarmos de novo. Que sejamos capazes de criar um espaço em que da boca ao ouvido vá a mesma distância que de um peito a outro, que sejamos capazes de instituir a discussão, de intercambiar os pontos de vista, de aplaudir o adversário, de estender a mão desavindo, para que a vida nesta terra seja um abraço sempre fraterno e caloroso.
Mário lucio
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