eu remendava-me a alma nas conversas de quem não conhecia
Os Semáforos do amor
Há sensivelmente treze anos que deixei Terra Branca, lugar que morava no tempo da universidade. Morávamos com catorze, numa casa cheia de cabo-verde, a casa tem duas grandes salas e quatro quartos, o país tem 10 ilhas e em cada um poderia ser uma casa, onde vive pessoas de quase todas as ilhas.
Na nossa casa uns vinham pernoitar, outros a espera de consultas médicas, e, eu remendava-me a alma nas conversas de quem não conhecia, e gradualmente tomava-me pelas ilhas através das suas palavras e o íntimo de cada detalhe que pergunto. Apelidar-me dê ô retalhista do norte, por ser de Tarrafal. Juro que nunca entendi este tal de retalhista.
Aquilo marca as pessoas. Falar com quem acredita que daqui a pouco tudo vai acabar e a vida vale a pena nessas conversas de quem nunca viam na vida, alguns deles sentia-lhe a alma com vontade de sair pelos olhos e o estômago fala em linguagens muito canceriginas, conheci-lhes todos pelas maleficências das doenças. Estávamos em 2010. A senhora reclama da INPS, com um tubo longo e fina que lhe atravessa bandas da costela, três em três dias vai fazer hemodiálise na companhia do amigo binho, um repatriado dos “estaites”.
Outros dias amanheciam fracos, outros quase sem nome, desejando aguentar a mão numa coxa do mundo, pouco ou nada poderiam fazer a não ser nas esperadas insistências, em mandar o binho comprar pães e frutas. Nem comiam tanto, nem lembram de se alimentar, já habitava neles a desconfiança de que tudo no corpo e no sangue, ficaram doentes por terem comidos coisas com químicos, parecia aparente descoberta.
Se não fosse a minha insistência, que lhes atravessavam a boca e a cabeça em insistentes conversas de manhã e da tarde, nem lembrava deles, hoje, após saber que nenhum dos amigos morreram, mas, faleceu o dono da casa que por vários momentos lhes perguntava o que iriam dizer ao todo-poderoso do céu quando chegassem ao outro lago do confinamento.
O senhor é, mesmo em badiu chato. Dizei com raiva, perguntava-lhe de aquilo que dizia se é por ter uma certa raiava ou a situação é o medo da luz que acende la no fim da rua?
— neste caso estas a referir ao fim da vida. Fez se um grande silêncio até o final do dia. Na volta à casa, ficou a imaginar na espera que se acenda o semáforo na rotunda da fazenda.
-não meu filho, a raiva não é para ti e nem por ti. Porque tenho que sofrer assim? Esse tubo fino que me atravessa os pulmões, INPS que atrapalha nas transações medicamentosas, a dependência de outros, em tempos azarava o fundamental de um homem. Ela desaperta os cabelos e lança pela cara e as costas. Entre olhar escondido-lhe vi a ponta de lagrimas a cair.
-É preciso manifestar contra o amor, é preciso em tempos de força no corpo, manifestar contra os semáforos do amor, saber a hora que é sinal verde, hora de sinal vermelho, hora de sinal azul. Eu nem sei em que sinal estou, posso morrer a dizer a próxima palavra, mas aposto que neste momento morre alguém, ninguém sabe quando é a hora exata da sua morte.
Essa angustia que nos mata aos poucos, e esse tubo que me parte a existência. Os pães e as frutas eram para os meninos que deitavam ao relento na rua ao lado da casa, de dia traficavam pedra e as suas desgraças.
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