A noite, cada mulher deveria estar com os companheiros, não é desejar muito, sentir a noite a passar bem protegida
A morta e os dois irmãos.
O que nos vale na vida e que nunca acaba é o nosso nome. Ele é repassado a outra pessoa, mas o nosso corpo não. O nosso físico acaba. Menininha era uma dessas frondosas mulheres que no seu tempo fez das suas como pôde, o tempo teve sempre com ela a bem e mal, a ferro e fogo.
Há muito tempo doente, e no final da vida finalmente encontra um amigo para falar o que lhe sempre saltou na cabeça e foi residir na alma, está pronto para sair em repouso, nos ouvidos do doutor e do companheiro que espera se despedir e desta vida.
Despedidas na ora da morte, nunca é a nossa raça, é um até nunca mais. Revelar segredos na ora da partida tem os seus significados e desassossegos, espera ela que o marido entenda o que sucedeu nos erros que deram no tempo que poderiam desejar e pecar. Nem famílias da ilha foi trazida, talvez já não lembram mais dela, a única marca é a variante da língua que conserva em cada palavras que carrega e faz a questão de falar finamente para distanciar da variante da ilha de Santiago.
Está no derradeiro dia da sua vida e resolve contar ao parceiro a dúvida que ficou no seio da população, sobre o ato indecoroso praticado quando resolveu deixar o marido dias depois de ter casado, julgando que não é mulher de ficar à espera de um homem que faz da imigração o meio para tudo.
Ela crua e nova fica fintando a noite cheia de desejos à espera de um marido imigrante, na casa do pai do cônjuge e irmãs e irmãos, onde calejava a palma da mão sem reclamar o trabalho duro de sol a sol.
A noite, cada mulher deveria estar com os companheiros, não é desejar muito, sentir a noite a passar bem protegida, mulher nova não despensa o trabalho de gastar o corpo, basta que esteja protegida com o seu ser ao lado, mesmo que tenha cara carregada, por que um homem do interior não se exige outra coisa senão a sua cara fechada e desejo que derrubara a terra, e fazer filhos para provar a vizinhança e amigos de que a sua senhora é mulher para a vida inteira, mesmo não querendo ser essa mulher, há que aceitar o destino.
O amado se encontra longe e a cama larga não pode suportar um corpo novo sozinho e muito comentada pelo povo quando a acha uma mulher ardente e riscos elevados quando veste uma saia brexa brexa. Se convenceu que é um perigo, e o perigo o atingiu. Caiu em tentação de praticar o ato carnal. Podemos viver como queremos, e respiramos fragâncias do céu e inferno, nascemos de num leito e por lá haveremos de terminar, caso o momento terminal o permita.
O médico fez o sinal ao enfermeiro de plantão para chamar os restantes familiares para se despedirem, porém, foi-lhe entregue um envelope que abriu à frente da enferma, ali se encontra há mais de um ano para as frequentes rotinas de medicação, análises e conversas sobre o fim da vida com o médico.
-Então doutor, saiu desta vez?
O médico leu o conteúdo no envelope e deu com a cabeça.
-Sim, saiu, é para esta semana, daqui a quatro dias tenho de estar na outra ilha, a minha ilha.
-Oooh, que alegria doutor, é a melhor notícia que poderia ouvir nestes meus últimos dias. Voltar a nossa ilha.
-Não fale isso Menininha, ninguém sabe quem parte primeiro, eu posso ir antes de ti, ninguém sabe do dia de amanhã. Além do mais, somos patrícios.
-Doutor olha para mim, acabou o meu corpo, ainda me resta uma porção de fôlego para despedir-me de algumas pessoas, nesses dias que me faltam. Mas, doutor, você está com a vida pela frente.
O médico observou a paciente bem de perto, com outro olhar, um olhar de homem sem a bata branca.
-Você parece que era tão cheia de charme e devoradora dos olhos e corações.
-Doutor, olha o meu estado, eu estou acabada, nem me permito sonhar, essa doença me comeu até a raiz e morada dos sonhos, pelo menos não me impede de lembrar o que me aconteceu no passado doutor, o senhor fala assim, no entanto, não poderei confirmar isso. Sou é uma grande desgraçada, quando se é nova e o nosso corpo pode ser visto e admirado permitimos alguns pecados e sacrifícios pela conta do amor, mas mulher que é mulher, mesmo sendo casada, gosta de ser desejada só para revidar e mostra em birras que finalmente encontrou a aparente paz. No fundo, estando a fazer compras, andando na praça, chegando ao trabalho, passando a frente de um segurança jovem dessas empresas que pagam pouco, estando nos concertos, nos desacertos da vida pensam na paz e no inferno que poderia ser com outro corpo sem ninguém saber. Eu acho que nós apaixonamos todos os dias enquanto envelhecemos por nossos companheiros e pelos outros que cruzamos na vida, acho normal, é preciso encarar a realidade, os seres humanos se atraem, traem e pecam.
-Valha-me Deus, não fala isso, mulher.
Tossiu longamente a mulher prostrada, sem força nenhuma, na cama e segurada pelo médico, depois recuperou o fôlego e observou o jovem médico a sorrir.
-Tu és tão puro, e nem sabes nada de mim, às vezes lhe aparecem santos à frente num consultório, outras vezes lhes aparecem outras encarnações à vossa frente, cada um com as suas frustrações, cada um com as suas dores, cada um com seus diabos, uns têm a doença do céu e outros com a doença dos infernos, e eu com a doença dos homens, mas, acho que depois disso, eu desenvolvi a minha própria doença.
-Que doença é essa?
Perguntou o doutor.
-É estar viva neste momento, quando todos me querem morta sem saber, doutor.
-Como assim? O que fizeste, minha amiga? Porém, digo-te, morremos todos com a ideia de irmos para os dois lugares como se o bem e o mal tivessem casa própria e vocês nunca se importam de quem são, só fazem o que tem que ser feito, talvez no fundo o maior médico seja aquele que nos cura os males da alma, até pode ser ele, aquele chamado de Deus.
Por essas palavras terminou de falar o doutor.
-No fundo, uma mulher com a necessidade, também deve praticar o que deve ser feito, mas, doutor não estás apaixonado por mim, pois não?
Brincou a doente, sorrindo com muita dificuldade para desanuviar o ambiente de diálogo tristemente criativo que se desenvolveu, e ignorou as perguntas do doutor.
O médico sorria enquanto anotava o papel na placa na sua mão e depois sentou-se na ponta da cama da paciente.
Carinhosamente a mão da Menininha acaricia a mão do médico que o observa fixamente, os dois em silêncio como se a frase conhecida, “assim como na hora da nossa morte” se apegasse como anexo e só eram esperados o marido e os primos que estavam no corredor para se despedir e confirmar o ámen final.
-Não vá embora, fica aqui comigo até ao fim, doutor.
A Menininha pediu ao médico, com muito esforço, como se aquelas palavras fossem guardadas por muito tempo junto às outras e quando saem, vêm junto as faíscas que queimam o tempo que estiveram por dentro dela e ninguém mais teve a sorte de ouvir ou ser digno de ser partilhado, um segredo por ora tão necessário à beira da morte.
-Não vá doutor, não vá…
Largou a mão do doutor e fez sinal para uma bolsa de roupa no meio das outras já amontoadas e que pelo estado já abatido mostra que a paciente há muito que se encontra internada.
-Apanha aquela bolsa preta doutor.
O doutor olha para a bolsa e alonga a mão até perto da parede e puxa a bolsa e entrega a Menininha. Ela com algum esforço abre a bolsa e retira um livro e entrega ao doutor e diz:
-Doutor, está tudo aqui, mas nem tudo o que se diz ali é verdade, leia o livro e estabeleça as ligações entre os papéis, doutor, atribua a voz de um para outro e vê o que faltou.
O doutor observou o livro, que o espantou e lhe saltou diante dos olhos pela primeira vez desde há quase dois anos que a senhora Menininha está ali internada, sem saber quem era realmente era aquela senhora dona de o maior escândalo nacional.
Ao ler o título da obra começou a relacionar o livro com a senhora à sua frente, inaugurou a fazer perguntas que nunca antes pensaria fazer fora do âmbito medicinal a um paciente. Quando o caso se deu na década de oitenta, ainda pouco ou nada do prelo e nenhum alarme se fazia sobre qualquer tipo de caso verçudo ou assuntos que poderiam espantar ou testar a imbecilidade de um povo.
-Minha senhora….
-Sim, doutor, fui eu, mas, por favor leia, e estabeleça as relações e tente ver se a imoralidade que me atribuem está no lugar correto.
O doutor vê a senhora com descrença, mais de trinta anos depois, um livro e uma história num hospital e um caso diante de uma quase morta estava prestes a voltar com um caso de tragédia familiar.
Era o pensamento do médico que atinava sobre o caso que ele ainda menino lembrava com perfeição por ser o pai dele amigo do então juiz da cidade onde residiam e praticava a medicina.
No dia da tragédia, o pai do médico se encontrava na zona de kruxa e ouviu os primeiros choros e o desespero provocado pelo pai a troco de hábitos tolos que só fragilizaram mulheres fortes e espetacularmente bonitas, sejam elas de nariz grande ou negras mais que a negritude de uma panela, mas, que o lume lhes cozinha a coragem por dentro, e no coração o fogo quente tem guardado a ternura de quem trocou algum vermelho batom pelo chama na comida que satisfaça o menino que depois criava na cidade e a cidade cria junto com ele.
Fim da parte I
Mario Loff
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