Nascemos só, caminhamos só na vida, aqueles que cruzamos um dia, são enfeites que a vida nos dá para apressamos a morte.
A morta e os dois irmãos
Final
Manhã cinzenta, e vento a bater nas placas informativas do hospital, a rádio dá a notícia do desastre da embarcação que saiu do porto na madrugada de tempo instável.
O movimento continuou a se fazer e começa a aparecer rosto muito conhecido com o do doutor, tinha feito amizades na cidade onde exercia a medicina, o espanto, mágoas e choros cortantes se dissemina pelo hospital e depois muitos alguns corpos sem vida são levados à casa mortuária e do doutor era uma entre dezenas de cadáveres.
— Olá, doutor, então foste embora e nem foste despedir!
— Menininha, o que fazes aqui?
— Não doutor, deves perguntar o que tu fazes aqui?
A mortuária está cheia e o doutor vê o seu corpo vestido extremamente intocável desde a última vez que trajou, como se fosse o homem que decide viajar ao encontro de algo especial, de fato azul, caneta e lencinho branco no peito, e os seus olhos ainda a brotar pequenas gotas de água salgada. Do outro lado o corpo da Menininha posto no caixão e levado ao cemitério.
— Mas Menininha por que os coveiros levam o teu corpo e não familiares?
Ela ouve e não diz nada, só assiste o movimento do corpo a ser metido no plástico depois de um pano branco e levada para uma sala para ser lavada e depois largada numa cova.
— Nascemos só, caminhamos só na vida, aqueles que cruzamos um dia, são enfeites que a vida nos dá para apressamos a morte. Tudo se resumo a uma cova e o seu infinito, numa cova acabamos sozinhos, nenhuma verdade ou mentira nos salva no fundo da terra, só a boca do dono do mundo nos assume. Os bichos que nos abala a existência da carne. Eles são sinceros, porque não perguntam, só nos comem a carne e fica os ossos.
— E lá é tão silencioso, teremos o tempo suficiente para pensar e deixar de pecar.
Respondeu o doutor, que complementou o pensamento da Menininha.
Os enfermeiros e outros doutores chegam no corpo do doutor e lamentam, choram a perda. Assistem a tudo no mesmo lugar, separado entre vivos e mortos, assistem às suas salvações e às suas tragédias. No entanto, o doutor repara que viver é estar sempre estafado.
— Viver é estar ciente, e estar sempre ciente é estar cansado.
Afirmou sem apontar para Menininha.
— Isso eu posso afirmar-te, doutor.
Outra voz lhe respondeu. A Menininha pôs-se a procurar a voz, conhecida. Depois a voz sorriu longamente, chamando pela Menininha.
— Menininha, Menininha, não se lembra de mim?
— Menininha, quem é?
Perguntou o doutor.
— É o homem morto, por minha traição, mas não era ele. Antes de morrer eu confessei ao meu marido, o irmão dele. Afirmou a Menininha, sentindo em paz.
— Então quem foi?
O doutor voltou a perguntar.
— Foi o meu pai, ela e o meu pai traíram o meu irmão, e eu só sou apaixonado por ela, mas nunca tivemos nenhum ato íntimo a não ser o sentimento que carrego, de resto, ela negou, e eu fui mártir do mal-entendido.
— Já duraste aqui!
— Desde que me trouxeram na camaradinha e no esquife deixaram-me aqui, deram o meu corpo, a terra assiste tudo, eu nunca fui embora, mas existiu quem me conseguia ver.
— Quem?
— A dona Maria Kaiunbra, aquela que ti convenceu a frequentar a igreja e cantar salmos e cânticos. Vi e senti o teu arrependimento e as minhas raivas e ódio cessaram.
— Todo esse tempo!
— Sim, depois que fiquei frio, procurei ir embora, e não me receberam, até que percebi, que a sua solidão e sofrimento tinha alguma ligação comigo.
— Como, de que forma?
— Continuava a amar-te, isso alimenta a distância, e quando olhava para o meu pai, via uma imagem negra que o incomoda e fazia ele sentir o terror de viver com culpa, a vida desde então foi um inferno para ele, nunca se livrou da tragédia que provocou.
— Por isso, morreu sofrendo, e se tornou quase que uma criança a padecer na cama e cadavérico, se negou ao arrependimento.
— Você, já há bastante tempo que morreu, já tens idade de ser esquecido, mas, estas aqui. Pareces um morto velho, estas como a última vez que olhamos a distância, um jovem eternamente bonito. Jovem quando morre fica mais bonito, talvez por ser tão trágico.
— A morte velha não tem sentimento algum. Morremos de fraqueza, amar é estar forte e pronto, para sofrer por alguém morto não sofre e não corre atrás de amor algum. Um morto não é nada mais do que a terra em decomposição, ali é o adubo da aterra não doa mor, respondeu o cunhado.
— Badiu, uma raça inteligente quando morre. Brincou a Menininha em voz baixa, conformada com a situação e a indulgência.
— Você, morta e não muda nada, nem o que sai da sua boca, respondeu ao cunhado, com dureza.
Passa as horas. O cunhado lamenta com a Menininha, que pára no meio deles, enquanto o doutor assiste os colegas a lhe tirarem a roupa molhada, e levado para ser lavado e vestido. A Menininha lhe agarra as mãos.
— Doutor é como tínhamos falado, ninguém sabe quem morre primeiro. A roupa é uma pele que usamos para protegermos, mas, dentro da nossa pele, por dentro, ninguém nos vê, não há um esforça para falarem da nossa cara dentro da nossa pele.
Doutor no momento via como era tão novo, tinha levado a vida com muito rigor e dedicado à profissão, deixou de se divertir, reparar para sua colega, tão nova e tão bem-feita de corpo, observa os lábios e põe os dedos no rosto para limpar as lágrimas e não consegue agarrá-la a cara e as lágrimas caem e secam no chão.
— Nem filho tive para dar a continuidade a minha cara e o meu sangue. Após enterrarem-me serei esquecido rapidamente. Ela é tão linda, nunca a dei a atenção que devia. Só queria atender a vida dos outros. Daria tudo para estar com ela um minuto, talvez essas lágrimas que cai dos olhos dela é a mistura de muitas coisas. Entre os quais o amor.
— Eu, também não tive filhos, doutor, temos os dois para viajar por esse céu afora, aviso desde já, não sou linda e bonita como a sua colega medica Isaltina. Mas precisas libertar da culpa para podermos ir.
— Você vai para o céu?
- Perguntou o cunhado.
— Vou, sim, porque não menti a Deus, ele sabe que dentro de mim falava com ele. De todo modo, se é para ir ao fogo, irei.
— Nós já estamos no fogo, achas que o inferno é em outro lugar? É aqui, aqui podemos vivenciar coisas magistrais dos homens e coisas aberrantes feitas aos nossos semelhantes e não podemos fazer nada, isso deve ser o pior sofrimento, saber que se morreu e tornamos livre, mas nunca poder fazer a diferença, isso sim é o inferno, ver o mal e o bem sem fazer parte dela. Seremos uns meros assistentes, um nada.
— Talvez é isso. Um sopro de silêncio. Acrescentou o doutor.
— Menininha olha!
Doutor chamou a Menininha para ver a sua sepultura.
— Tu viveste bem, com a palavra de Deus, cantando na igreja, dando esmolas, fazendo tudo o que uma cristã poderia fazer para estar ao lado do senhor e assim foste enterrada.
— Sou uma miserável. Fui sepultada como uma indigente.
O doutor deu a mão a Menininha e o cunhado os acompanhou, e caminharam. Sem lamentos, a Menininha foi-se ao lado do doutor, com vazio por dentro, e algo na cabeça para ser dito e descarregado, mas, quem ouvirá, quem está do outro lado para sorrir ou irritar connosco? A morte tem essa magia, a magia de nos esfriar, e quando esfriámos esquecemos de nós e dos outros por dentro e por fora, acaba o corpo e acaba o sentimento.
— Agora ti entendo Menininha, sobre o livro, tens toda a razão.
O doutor disse as últimas palavras e desapareceram. Atrás deles começa a formar-se uma mancha negra que caminha devagarzinho. E o cunhado da mininha volta rostro para trás e lamenta.
— Pai!
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