A cidade é cheia de história, ainda tem outros tantos enterrados, ignorados e extasiados de tantos estar na boca do povo
Na Cidade Velha até Quintal de Belinha
Cidade Velha é antiga no nome e cheira a brisa do mar, homens pretos, antigos e primos lusitanos. Descemos pela estrada abaixo e vem-me à cabeça alguns questionamentos sobre esse canto do mundo, se sempre foi assim o acesso ao interior da cidade, de um flanco a Rochão tapa a visibilidade de outro lado da ilha até São Martinho, e da outra via da estrada avistamos o horizonte longo, botes, moradias, resmungo de mar, restos mortais das embarcações e ondas que acabam nos nossos olhos e diluem-se nas pedras e voltam a se refazer. De repente, o kutun está muito, tocado pela paisagem do lugar e o seu espanto, é que a cidade tem história, mas, não é velha, até podia ser antiga, e ele pergunta-me.
— Mas, como é que o tal pirata não haveria de assaltar este lugar, pá?
A cidade é cheia de história, ainda tem outros tantos enterrados, ignorados e extasiados de tantos estar na boca do povo, mas, há outras estórias que estão a ser ignoradas. O das pessoas de hoje que caminham como se o espaço fosse só um chão de terra e pedra que nasceu igual a restantes países, mas não, eles ganharam alguma distinção quando se tornaram o lugar para o triunfo do cabo-verdiano. Mas, as pedras não falam e as histórias ficam em silêncio.
— O inglês Francis Drake?
Perguntei sobre o tal pirata. E ele ficou na dúvida se talvez não fosse outro?
— Será que não é Jacques Cassard?
— O importante a saber nisso, é que aqui se praticou a pirataria.
— Ainda se pratica?
Voltou a perguntar.
— Acho que não, aqui se tornou a terra de homens sérios, lugar em que o mundo classificou como nosso, aqui já não se pode piratear e nem atear a desumanidade, aqui a proteção dos fogos tem que ter alguma medida e dimensão para que o frio não se torne quente e o quente não se torne o lume que não se apaga, aqui virou a lei do mundo, lugar de muitos homens gordos e terrivelmente pretos e outras vezes brancos na alma.
— Aqui também é a terra dos brancos.
— Por isso tenho dito que é a terra dos primos.
— Que raio é isso de primos?
— Os primos portugueses.
— Não sou primo nada deles.
— E irmãos?
— Também não.
— Família?
— Também, não.
— O meu amigo, decida-se, diga-me então o que somos?
— Só seres humanos a preto e branco, cheios de carne e ossos, às vezes cheios de susto, pronto para aprontar traquinices, pirataria dos pecados.
Parei de falar com o kutun, ao som do motor que acompanha o ruído das ondas próximas que batem nas rochas e falam numa linguagem molhada, quase náufrago dos mortos de outros tempos.
Provavelmente o que se precisa nesses tempos, é dar língua aos mortos da cidade de envelhecidos no nome e esquecidos óbitos, se for assim, quantos brancos e pretos seriam, em desvantagem estariam os pretos? Ou seriam sempre os homens em desvantagem quando se dão prazer a se tornarem meios homens, quase insuportáveis, diante dos seus donos, porque ainda tinham bocas para responder o tal, sim, senhor. São bocas negras.
Descemos à cidade, a viatura começa a chorar peça a peça. Em cada basalto mal assentado na terra, em cada curva que captura a vida naquela urbe, que um dia o poeta chamou cidade de antigo nome, talvez merecesse em épocas ser chamada da antiga fome, o país inteiro fosse das antigas fomes.
Chegamos ao pelourinho. Pessoas sentadas a fotografar caras, corpos felizes, no solo e nas casas e outras tantas coisas, em silêncio pessoas a escutarem e a observarem o que é contado pelos guias em alguns lugares e posicionamentos bem identificados, alguns admirados quando olham o pelourinho e o forte a longa distância e as caras deles desenham uma certa geografia da coragem tanto vindo de longe como do continente mais perto.
Mais adiante a sede do município. Observo a Câmara Municipal e reconheço o meu amigo Pina. Pina já esteve mais de cinquenta anos na cidade, só saiu até à capital para dizer que ele é cidade velha no corpo, espírito e até à morte estará ali.
Eu e o kutun a andar em direção ao Pina. Baixote, com estilo de karateca aposentado, quase aleijado devido a tantas posições de quem queria indicar ordens cativos de se ficar eternos como o do Bairro e rua Banana, ali caminharam os homens da terra, ali se fixou a mais antiga rua do mundo feita na África em direção ao Santiago. Dá ordens sobre as disposições e prioridades da cidade. Finalmente cheguei em frente do homem.
— Meu amigo Pina. - Reclamei com felicidade.
— Mas, quem é o senhor para me chamar assim?
Fiquei espantado pelo tom do homem, há muito tempo que não nos vemos, mas, julguei que não é motivo para a rusticidade, insisti a agarrar o kutun para não ser grosseiro com a ideia de querer defender-me do Pina.
— Pina, sou eu, o teu camarada de muitas viagens.
— Qual camarada, qual viagens. Eu não gosto dessa coisa de ser camarada, ou somos companheiros, ou não somos nada.
— Pina, sou eu Meise de Tarrafal, lugar de prisão e dos antigos antifascistas e anticolonialistas presos? Lembras-te? Primeira vez que te tinha visto, chamei-te fulano de tal, lembras?
Ele ficou num silêncio denunciador como se estivesse a nos experimentar, fiquei mais animado, talvez estivesse a brincar comigo.
— Vê se não estás a confundir com outra pessoa, fulano de tal é você.
Depois da última resposta fiquei um pouco dececionado, chateado, até que alguém me bateu no ombro. O José dos copos.
— Não dá muito crédito às palavras dele, há quatro anos que a cabeça ficou-lhe lolodo, e esqueceu de muitas coisas, inclusive o seu próprio nome, mas, de repente, e às vezes, lembra das coisas, não se preocupe, daqui a pouco na festa da cidade ele vai lembrar.
— Como assim festa da cidade?
— Então, não sabias? Agora temos quintal de Belinha!
O nome Belinha é atraente e desafiador, a última Belinha que conheci estava virgem ainda aos quarenta e cinco anos, e o seu marido casou numa sexta à tarde e sábado de madrugada teve que ir às pressas à cidade da Praia deixando as festividades a toda a pressa porque o assunto era de máxima urgência, porém naquele dia chegou de visita ao país um dos presidentes mais poderosos de um país desses arreadores aí da nossa costa. Segundo reza a estória dos mais velhos no cair da noite, ele fazia macumba, inchação da alma, aumento dos lábios, criação de bueiros no nariz, no lugar do pénis ele enfeitiçava para ficarem cordas longas no meio das pernas, uma longa tradição que ele aprendeu e se encarnou, ele amara os espíritos dos seus desafetos e de quem não lhe gosta muito do que pensa e prática.
— Tu lembras do Piduka de nha Maninha?
— Aquele que casou um dia e desapareceu outro dia?
— Não desapareceu, ele, segundo dizem, morreu em um dos vários acidentes quando o Mobutu Sese Seko chegou de passagem no país em direção a outro destino.
— A esposa Belinha ficou seca, virgem, bonita, mulata, depois morta, abandonada, sem ter nada.
— Não seja tão trágico, amigo kutun, dizem que morreu no acidente, mas, até hoje não foi confirmado. Mas, é tão penoso morrer com desejo de possuir uma mulher que se casou.
— É tão triste morrer seca à espera de um marido que nunca mais volta para casa.
— Agora imagina esses homens que foram trazidos para a cidade velha e nunca mais voltaram para casa?
Ficou em silêncio o kutun ao relacionar os dois casos aparentemente desiguais na dimensão e crueldade, mas a perda está por dentro. Porém, peguei o kutun na mão e afastamos do Pina que me observava de olhos sarados. Fiz-lhe o sinal de tchau e afastamos.
— Então, vamos a quintal de Belinha?
— Fazer o quê, vamos a Belinha.
— O importante mesmo, é que nesse novo tempo, nunca mais nenhum homem decida a morte do outro homem, enquanto ele pode desempenhar as suas mínimas funções.
Mario Loff
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