Não se enganem, somos poeira, pós e lume que se apaga, so
A chegada aos Alpes Suíços era ao mesmo tempo uma novidade e uma turbulência antiga, algo que os habitantes jamais poderiam imaginar. Sob um céu estrelado e uma lua cheia que iluminava os picos nevados, um chalé remoto aguardava silenciosamente os visitantes inesperados. Esse chalé aparecia apenas uma vez ao ano, quando as senhoras badias da ilha de Santiago penteavam seus cabelos com pentes de ferro para irem à praça no Natal, em protesto contra Deus e os homens que levaram seus maridos para a Suíça e jamais voltaram.
Um monge suíço os observava com espanto e fascínio enquanto preenchia as fichas para efetivar o aluguer até a partida na manhã seguinte. Além do monge, havia um cego badiu que se convertera em cego suíço, vendo tudo em preto e branco, e um mudo sanpadjudo que se tornara homem do mundo, aprendendo a falar em silêncio nos salões de todos os universos. Eles riam até chorar ao ouvir os nomes dos recém-chegados.
O Buda mais velho se chamava Fhodébudham, sua esposa, Khumilikabhali, e o jovem, Fholgunakhosta. Antes de se retirarem para descansar, o monge kapadu perguntou:
— O cão é de vocês?
— Sim — respondeu Fhodébudham. — O nome dele é Kulpa Rixu, mas à noite ele atende por Vira Mundo.
— Vira Mundo? Interessante.
O cego, encantado com o ambiente alpino, comentou:
— Nunca imaginei ver uma família de Budas negros na Suíça. Na minha infância, brincava com Budas de avião, mas... O que os trouxe a este lugar?
A esposa ouviu e voltou a observá-lo. Convencido de que o olhar era para ele, o cego disse:
— Mulher, se sentir um espanto no coração e algo lhe diz que é amor, não caia na armadilha. O amor à primeira vista é traiçoeiro; o que existe é spoiler no primeiro thriller.
Triste, a mulher foi para os aposentos ao lado de seu Buda, cansada de vagar pelo universo sem encontrar respostas. Mas viu o espanto pela normalidade do marido da senhora. Eles comentaram sorrindo:
— Humanos acham que uma mulher deve ser cortejada ou negada só pelo companheiro. Estamos tão cansados dos humanos. E se dormíssemos e pedíssemos a Deus para virar a mão enquanto segura o universo?
O cão latiu, parecendo dizer não.
Na recepção, o mudo concordou com a cabeça, aprovando a permanência deles. O monge kapadu, intrigado, começou a soletrar os nomes:
— Kumi li kaba li... O que isso significa em suíço?
O mudo murmurou:
— Uhnn, uhnn.
— Fodé bu dan?
O cego exclamou:
— Uhn uhn, uhn.
Antes de pronunciar o último nome, o mudo interrompeu:
— Não repita, não diga o último nome.
O cego acrescentou:
— A esposa é uma flor perfumada, satisfeita, feliz e distante, um segredo revelado e jamais dito.
O mudo, observando o monge, disse:
— A felicidade de um homem não se diz, sente-se pelo cheiro.
— Isso me lembra a primeira vez que vi minha bravense. Fiquei sério diante dela, mas feliz pa kaga.
— O que disse a ela? — perguntou o monge.
— Contei uma pequena passagem. Foi tiro e queda.
— O que contou?
— Quando um santiaguense chegou à porta do porto da Furna, sorriu uma bravensa quase cor, quase flor, mais para água benta, cheio de flúor nos dentes. Varões presentes enciumados. Nem mais, o ousado santiaguense ofereceu uma flor, para o desespero de um bravense desgovernado que bebia cálice de Djabi com um canudinho de bambu.
— Trágico, trágico — responderam os dois homens que o acompanhavam.
Na manhã seguinte, levaram atos de bom dia e cantaram um feliz Natal numa paisagem coberta de neve branca e fria, que penetrava a carne como sangue gelado. O monge kapadu, um suíço alto, loiro e de olhos verdes, desejava igualar-se àquelas pessoas espirituais. O cego e o mudo, em um escrito, deixaram claro que dariam seus olhos e suas cordas vocais para trazê-los de volta, mas isso não estava ao alcance deles.
— Era uma família divina de passagem — concluíram.
— Mas para onde foram? — murmurou o monge kapadu.
Então, num relance, o cego percebeu algo extraordinário. Era pela janela do chalé que se abria a entrada para outros mundos, e o cão, apenas um Vira Mundo à noite, transformava-se num cavalo viajante noturno, cruzando céus e estrelas. A janela do chalé não era apenas uma passagem para o exterior, mas um portal para o desconhecido, onde as almas vagavam livres, guiadas por um cavalo celeste.
Ao cair da noite, o monge kapadu sentiu a mágica no ar. Percebeu barulhos de luz no quarto; era o cão se transformando diante dos incrédulos olhos das nuvens e gelos suíços, assumindo a forma de um majestoso cavalo negro que relinchava suavemente. O animal, com olhos brilhando como estrelas, organizava a linhagem dos planetas e as cabalindades dos caboverdianos que viviam no bairro ao lado, bebendo grogue e comendo carne de porco suíço.
Impulsionado, o monge kapadu abriu a janela e foi puxado por uma força invisível para fora, montando o cavalo celeste. Eles galoparam pelas constelações, viajando por mundos desconhecidos e maravilhosos. Em cada parada, Fhodébudham, Khumilikabhali e Fholgunakosta se revelavam em novas formas, moldando o universo com suas essências transcendentais.
— Não se enganem, somos poeira, pós e lume que se apaga, somos um nada, mas barulhentos. Parece que encontraram o sentido da vida.
De volta ao chalé, o cego e o mudo permaneceram imóveis, incrédulos com a cena. A manhã seguinte trouxe um amanhecer sombrio, com uma nevasca que cobriu tudo em silêncio sepulcral. O monge kapadu não voltou, e seu desaparecimento tornou-se uma lenda local.
— Era a família de Deus — murmurou o cego, sentindo a profundidade do mistério.
O mudo, com lágrimas nos olhos, escreveu: "Eles levaram um de nós. Seu espírito agora viaja entre os mundos, em busca do eterno."
Os moradores do vilarejo nunca souberam a verdade, mas, nas noites claras de inverno, alguns juravam ver um cavalo celestial galopando pelo céu, com um homem de olhos verdes montado nele, em busca de novas aventuras e segredos. Assim, o monge kapadu se tornou parte do mito dos Alpes, uma alma eternamente viajante, sempre em busca de mundos além dos sonhos mais selvagens. E, em todas as vezes que os badios faziam paródias com carne de porco suíço, algo estranho acontecia naquele chalé.
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