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A Lição na Ponte de São Domingos, por Mario Loff

Trabalhar a terra é um ato de fé, homem.

A Lição na Ponte de São Domingos, por Mario Loff

O burro chegou ao antigo Ponte de São Domingos com as narinas soltando gotas de água, como se o próprio ar estivesse impregnado de cansaço. Atrás dele, a neblina espessa engolia a paisagem, ocultando tudo o que existia além de alguns passos. Mas o som ofegante de uma respiração exausta revelava a presença de um homem sentado, cuja silhueta se fundia com a névoa, como uma sombra perdida no tempo. Ele apoiava-se na ponte de pedra, um testemunho das eras passadas, quando atravessar aquelas rochas era uma jornada vital para sobreviver e aventurar-se no interior da ilha de Santiago, enfrentando bruxas.

O rio, serpenteando lá em baixo no vale, sussurrava como um canto de despedida das chuvas que se demoraram muito além do esperado. Três meses de chuva eram aguardados, mas o céu, que recebeu muitas rezas naquele ano, ora generoso, ora implacável, estendeu sua cortina aquosa por seis longos meses. Valeu a pena ter benzido na passagem em frente a todas as igrejas das ilhas, comentavam todos os homens que permaneceram na terra.

A ilha, envolta num manto verde que se estendia até o horizonte, não conhecia outra cor. Parecia que as montanhas estavam vestidas com o véu do mistério, cada folha um segredo, cada gota de orvalho uma história não contada.

O tempo, naquela manhã, parecia escorrer lentamente, como se cada segundo fosse uma eternidade suspensa. O céu, carregado de nuvens densas como flocos de algodão, obscurecia a visão, e os homens lembravam-se de uma vida distante, nas terras que haviam deixado para trás. As viaturas, outrora rápidas nas estradas sinuosas, agora repousavam imóveis, como se o mundo estivesse em uma pausa contemplativa. E nesse cenário de espera, os homens reinventavam as suas vidas. As terras, antes abandonadas e sem promessa, agora floresciam, como se a própria terra tivesse decidido sonhar junto com eles, esticando-se em paus e enxadas.

Quando o meio-dia se aproximou e a neblina começou a se dissipar, o burro e o homem emergiram lentamente, como figuras esculpidas na bruma. O rosto do homem era estranho aos olhos dos habitantes de São Domingos, um enigma que ninguém podia decifrar. O burro, por sua vez, firmemente plantado na ponte, recusava-se a dar um passo adiante, como se aquele fosse o seu destino final, uma escolha feita pela própria alma.

— Anda, burro! — gritou o homem, sua voz tingida de impaciência, cortando o ar como um açoite.

O burro, contudo, permanecia imóvel, como se estivesse enraizado na pedra, desafiando as ordens com uma teimosia que transcendia o simples entendimento. O homem, já perdendo a paciência, levantava a voz num crescendo de frustração.

— Vamos, burro! Anda logo!

E, no entanto, o burro continuava firme, como se tivesse decidido que aquele era o lugar onde devia estar, ignorando as palavras impacientes do homem.

— Vou-te bater, seu burro, burro!

Nesse instante, o burro virou a cabeça, os olhos escuros fixando-se nos do homem, como se quisesse dizer algo, como se desafiasse o próprio tempo. E então, numa voz que parecia surgir das profundezas da terra, o burro falou.

— Por que tanta pressa, homem? Não vês que o caminho à frente é incerto? Talvez seja melhor parar e pensar no que realmente procuras.

O homem, surpreso, deu um passo para trás, como se não pudesse acreditar no que ouvia. Mas a voz do burro tinha um peso, uma gravidade que o obrigava a ouvir.

— O que eu procuro? Procuro sobreviver, trabalhar a terra, arrancar da vida o que ela me oferece. — respondeu o homem, ainda desconcertado.

— Trabalhar a terra é um ato de fé, homem. — disse o burro, suavemente. — Fé de que o solo dará frutos, de que as chuvas virão na hora certa. Mas e o que fazes quando a chuva não vem? Quando o solo te nega? A esperança de viver aqui não está apenas na terra, mas naquilo que cultivamos dentro de nós.

O homem ficou em silêncio, sentindo o peso das palavras do burro. Olhou para as montanhas ao longe, cobertas pelo manto verde, e pela primeira vez percebeu que o que fazia ali, naquele pedaço de mundo, era mais do que apenas sobreviver. Era uma luta contra as adversidades, sim, mas também uma declaração de amor à vida, à terra que o sustentava.

— Tens razão, burro. — disse ele, finalmente. — Sempre pensei que a terra era tudo, que bastava trabalhar duro para viver. Mas vejo agora que é preciso mais. É preciso esperança, amor... E isso eu tenho negligenciado.

— O amor ao próximo, homem, é como a chuva que esperamos. Ele alimenta a alma, enche os vazios que a terra não pode preencher. — o burro continuou. — Quando te dedicas à terra, também te dedicas aos que dela dependem. Somos todos parte de algo maior, e é isso que nos mantém firmes, mesmo quando o caminho é árduo.

— E tu, burro, o que sabes do amor? — perguntou o homem, meio brincando, mas com genuína curiosidade.

— Sei que o amor é uma força que nos une, homem. — respondeu o burro, com uma serenidade que desarmava. — Olha para nós, tu e eu. Somos diferentes na forma, mas iguais na essência. Ambos carregamos fardos, ambos procuramos o nosso lugar no mundo. E, no fundo, queremos o mesmo: encontrar um sentido, uma razão para seguir em frente.

O homem se aproximou do burro, acariciando-lhe o pescoço, sentindo a textura áspera dos pelos, o calor que emanava do animal. Havia uma verdade profunda nas palavras do burro, uma sabedoria antiga que ele não podia ignorar.

— Talvez sejamos mais parecidos do que eu pensava, burro. — admitiu o homem, com um sorriso cansado. — Ambos somos teimosos, ambos queremos algo mais do que apenas sobreviver. E talvez... talvez eu deva aprender contigo.

— A vida, homem, é um campo vasto e incerto. — disse o burro, com os olhos brilhando de compreensão. — Mas se caminharmos juntos, se partilharmos o fardo, a jornada torna-se mais leve. Não se trata apenas de trabalhar a terra, mas de cultivar o que está dentro de nós. E nisso, homem, somos iguais.

O homem assentiu, sentindo uma nova conexão, uma espécie de irmandade entre ele e o burro. E ali, na Ponte de São Domingos, sob o céu que começava a clarear, eles permaneceram por um momento, em silêncio, compreendendo que, às vezes, é preciso parar e ouvir as lições que o mundo, na sua simplicidade, tem para ensinar.

Quando o homem finalmente se preparou para seguir em frente, o burro, como que compreendendo a mudança que havia ocorrido, deu um passo adiante, pronto para continuar a jornada. Mas agora, não eram apenas homem e burro — eram companheiros, cada um refletindo no outro a esperança e o amor que a terra, em sua sabedoria, havia plantado neles.

E juntos, sob o céu de Cabo Verde, observaram passarinhos a cantar, e o homem retirou a sua luneta verde dos olhos do burro e tudo voltou ao normal, mas a lição de se tornar mais humano já tinha sido imprimida dentro dele.

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A Lição na Ponte de São Domingos, por Mario Loff
Trabalhar a terra é um ato de fé, homem.
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