Santa Cruz, marcada pela sua forte tradição cristã e católica, carrega no seu próprio nome a presença simbólica da cruz sagrada.
A nossa viatura serpenteia por uma das estradas sinuosas do interior da ilha de Santiago, onde a maioria já é alcatroada, deslizando suavemente pelo litoral, em direção à cidade de Santa Cruz. Íamos ao encontro das festividades do município, uma tradição que há 48 anos celebra a força, a identidade e a alma do seu povo. Santa Cruz, assim como tantos outros recantos de Santiago, ostenta com orgulho a sua vocação turística e cultural, sendo palco do emblemático Festival dos Três Ritmos, onde o funaná, o batuku e o finason se encontram numa perfeita harmonia, transformando-se numa autêntica expressão da essência cabo-verdiana.
Durante a viagem, a nossa mente vagueia, contemplando a singularidade de cada concelho. Cada um é como um fragmento de história e cultura, uma peça fundamental no mosaico que compõe a identidade de Santiago. Santa Catarina, o grande centro comercial, sendo santa cruz o local de agricultura vibrante a maioria dos produtos chega de lá, é uma força económica que vibra ao ritmo do comércio e da troca. Os concelhos vizinhos, como São Lourenço dos Órgãos, São Miguel e São Salvador do Mundo, cada um com o seu carácter único, formam um caleidoscópio de tradições e histórias que enriquecem a ilha. Tarrafal, com as suas praias paradisíacas e a sua beleza ímpar, destaca-se como o destino turístico mais deslumbrante do interior, onde a serenidade do mar se encontra com a vitalidade cultural e a sempre simpática população que sabe receber as suas as pessoas.
A paz do percurso é interrompida pelos quebra-molas que surgem inesperadamente, como se fossem colocados ali para testar a nossa paciência e resiliência. É quase como se esses obstáculos refletissem o estado de espírito das pessoas que por ali passam, uma manifestação silenciosa do comportamento coletivo. Como bem disse Pinote, "olha o comportamento". A quantidade desses quebra-molas parece ser uma metáfora perfeita para os desafios quotidianos enfrentados pelos seus habitantes, um espelho que reflete as atitudes e as dinâmicas que moldam o dia-a-dia.
Superamos cada quebra-molas com a serenidade de quem compreende que a vida é feita de altos e baixos, de desafios que se apresentam no caminho e que precisamos enfrentar com paciência e sabedoria. Fiquei com a ideia de que, quanto mais quebra-molas há numa localidade, mais essa localidade reflete o comportamento das suas gentes, como um ressoou da sua vivência diária.
À medida que nos aproximamos da cidade, o tráfego começa a desviar-se em direção à praia, onde um palco imenso já está montado, pronto para receber os sons que fazem o coração de Santa Cruz bater mais forte. O mar próximo continua a abraçar a costa, e nos corpos jovens que ali se reúnem, o sal da noite começa a brotar como se fosse um sinal da sua entrega ao momento. É lá que a vida ganha cor e ritmo, onde jovens de todas as cidades, ilhas e até de outros países se reúnem para celebrar a vida, a música e a herança cultural que os une.
Santa Cruz, marcada pela sua forte tradição cristã e católica, carrega no seu próprio nome a presença simbólica da cruz sagrada. Governada pelo mesmo líder há três mandatos, é uma cidade predominantemente jovem, onde a vitalidade e a energia se sentem no ar. Se o funaná, o batuku e o finason nos fazem lembrar a África, os homens de Santa Cruz parecem encarnar esses ritmos, como se a sua presença robusta e marcante fosse uma extensão da música que enche o ar. Há mais África em Santa Cruz do que em todo Cabo Verde, uma africanidade que se manifesta de forma vibrante e autêntica.
No entanto, ao contrário de outras cidades onde as mulheres dominam as ruas, em Santa Cruz, são os homens que parecem tomar a dianteira, pelo menos naquela noite assim parecia, uma presença robusta e marcante que se destaca no meio da multidão. Apesar de as moças parecerem mas “bon na kumi agu”. O Festival dos Três Ritmos é um reflexo fiel da essência da cidade: uma celebração autêntica de ritmos que encarnam a alma africana, uma exaltação da cultura que os define e os une.
Amílcar Cabral, o nosso pensador africano, disse uma vez: "A cultura é a semente que faz brotar a liberdade." E em Santa Cruz, sente-se a profundidade dessas palavras em cada esquina, em cada rosto, em cada nota de música que sopra pelas ruas. É uma cidade onde a africanidade pulsa de forma intensa, onde a resistência cultural se manifesta em cada movimento de dança, em cada acorde tocado. Aqui, a identidade cabo-verdiana encontra a sua expressão mais pura e genuína, uma identidade forjada pela história e pela resistência, pela celebração e pela dor.
Eu e o Anilton Levy, muito solicitado pelas senhoras que pedem autografo, passámos três horas na cidade, absorvendo o ambiente, deixando-nos envolver pela energia vibrante que emanava de cada canto. Apesar de termos amigos escritores, colegas de curso e poetas na cidade, ninguém nos convidou para almoçar ou jantar. Então lembrei de Pulonga´l Bita e o seu “oh balantin, uhn uhn”, uma musica marcante e imortal. Talvez fosse uma questão de tradição ou de hábito, pois, como dizem por aqui, "na Santa Kruz ka ta kunbidadu djanta". A hospitalidade em Santa Cruz expressa-se de formas subtis, menos em gestos de convidar à mesa e mais em partilhar a alma da cidade. Afinal, a verdadeira hospitalidade é uma questão de partilha, de abertura e de compreensão.
Não entrámos no festival, mas observámos de longe o esforço genuíno das pessoas em acolher os visitantes, em criar um ambiente de celebração e de partilha. Compreendemos que fazer parte de uma cidade não é apenas caminhar pelas suas ruas, mas senti-la, integrá-la à nossa essência. É preciso sentir a cidade, e sentir a cidade, é uma responsabilidade. Nelson Mandela uma vez afirmou: "Não há nada como regressar a um lugar que se mantém inalterado para descobrir o quanto a gente mudou." Sentir uma cidade é isso: perceber o que mudou em nós ao caminhar pelas suas ruas, ao ouvir as suas histórias, ao deixar-se envolver pela sua energia.
O porteiro do evento, um rosto familiar de outros encontros, exibia uma simpatia que aquecia o coração. Em sua simplicidade, ele lembrava-nos que o verdadeiro acolhimento vai além da hospitalidade; é um acto de humanidade, de empatia, de compreensão. Santa Cruz, com a sua vibração e os seus ritmos, constrói-se a cada dia, tecendo a sua própria história, com a poesia e a resistência do seu povo, com a profundidade e a sabedoria da sua cultura. Como bem disse o poeta Corsino Fortes: "A ilha é a casa, e o mar, a sua porta." Santa Cruz é, sem dúvida, uma porta aberta para a alma de Santiago, uma janela para o coração de Cabo Verde.
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