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A Canção da Terra e do Milho - por Mário Loff

Os pássaros, despertos pelo amanhecer, começam a cantar, enchendo o ar com um tributo doce e suave.

A Canção da Terra e do Milho


Sob um céu de nimbos que rasgam o tempo, o motor da viatura ronca sua última promessa de chegada à propriedade de Margarida. O som arrasta-a de volta ao presente, mas sua memória, rebelde, mergulha para o dia da última chuva recordada por toda a sua geração. Em um dia estranho, quando os flumes se ergueram como bestas, ela pensara que aquele homem, um companheiro de outrora, fora arrastado para sempre. Agora, ele retorna à cidade após três décadas, um rosto esquecido que o tempo tornou estrangeiro, mas que volta com a urgência de algo inacabado.

Naquela quinta-feira cinzenta, um homem de nome Felismino chegou à cidade deserta. Dirigiu-se diretamente à igreja de Santo Amaro, cujas paredes guardavam o murmúrio das preces e os lamentos das gerações, uns tanto outros que forma presos no interior quando do tempo das cheias o teto caiu sobre eles, só lhe forma ouvido as vozes e queixa, e a própria cidade adotou o estilo de se queixar sem preocupara em luta como a margarida. Ele se ajoelha, mas suas palavras não são as de um penitente qualquer; parecem um diálogo íntimo com as pedras, um sussurro para o pó da terra. 

Talvez ele procure nas sombras das vigas o eco de algum espírito que conheceu. Enquanto aguarda a população dispersa, que está nas raminhas do mês de outubro, Felismino deixa que o tempo o arraste na contemplação da praça vazia, seu silêncio cheio de cheiros e sinais de vidas, destroços e saudades.

A praça é um retrato de resistência – flores desfolhadas cobrem o chão e se tornam uma sinfonia muda de perfumes e despedaço, uma guerra travada entre o que vive e o que já se entregou ao esquecimento. Ali, entre passos assonando nas pedras de mármore, o presidente da cidade surge. Retinto e com uma barriga redonda que se estende sob a camisa bem passada, ele exala uma presença familiar, mesmo que Felismino não o reconheça por completo. Em seu semblante, Felismino vê os traços de uma linhagem que o destino já lhe apresentou; uma figura que se parece tanto com um passado enterrado quanto com um homem que desdenha da humildade forçada, quase a mesma doença que contagiou sua própria história.

A chegada de uma nova viatura o distrai, trazendo pessoas com enxadas em punho. À medida que cada um desce do carro, fazem o sinal da cruz, sussurrando preces quase que clandestinas, e olham para ele, Felismino, como se fosse a visão de algo além deste mundo. Intrigado, ele observa o balé infantil ao redor do tanque, onde tartarugas, como esculturas de pedra e carne, desafiam o tempo. A água do tanque dança sob a luz da tarde, lançando arco-íris furtivos. Mais um carro estaciona, e jovens exaustos da labuta chegam, discutindo entre si, como se o trabalho não os tivesse exaurido o bastante.

E então, com a batida do sino ao cair da noite, surge Margarida, cansada e encharcada de um cansaço que os anos lhe moldaram. Sua figura é sombra e suor, a alma transbordando em cada ruga e cada resquício de poeira. Ela pára à frente da igreja, desenhando a cruz em sua fronte, procurando um recanto onde a solidão a abrace. 

A porta da igreja range lentamente, cada som um repercussão metálico que parece perfurar o silêncio da noite. Como uma sombra antiga emergindo das trevas, Felismino se aproxima, seu vulto encobrindo a entrada e trazendo consigo um frio intenso, uma sensação de arrepio que corrói a segurança de Margarida. O tempo parece parar enquanto ela o encara, uma onda de lembranças e susto rompendo décadas de paz falsa. E então, antes que ela consiga mover os lábios para qualquer saudação ou pergunta, uma horda de homens da cidade surge das sombras, os rostos sombrios e de expressão gélida, os passos firmes e decididos como quem segue um propósito de ferro.

— Tu pensavas que podias voltar… — um dos homens sussurra, e sua voz parece sair do fundo da terra, reverberando como um cântico fúnebre.

Os homens avançam em um círculo cada vez mais apertado ao redor de Felismino, os olhares penetrantes, a respiração pesada. Não há um pingo de compaixão, apenas o ódio calado que transborda dos olhos. Eles o empurram, o pressionam até que ele cambaleia para trás, os pés tropeçando em direção ao limite das pedras húmidas que cercam o pátio da igreja.

Num movimento brutal, amarram uma corda ao redor de seu pescoço, e ao final da corda uma pedra, pesada e fria como o destino que eles reservam para ele. Felismino, dominado, nada diz; seu rosto é uma máscara de pavor e resignação, ciente de que, diante daquela violência, não há salvação. Em poucos segundos, ele é arrastado, seus gritos afogados pelas risadas secas dos homens. O som do corpo de Felismino, lançado às profundezas da correnteza, assona pela cidade como um sinal de algo que deveria ser apagado, contudo alguém lhe botou um grão de milho.

Porém, o tempo, cruel e impiedoso, passa. O rosto de Felismino, desaparecido, torna-se uma memória difusa, um espectro que ronda as mentes daqueles que o mataram. Mas ele retorna de forma sutil e inexplicável, como o murmúrio do vento em noites caladas. O presidente da cidade, de aparência familiar e gestos de arrogância, parece ser um espelho do antigo agressor de Felismino, talvez um parente distante, um descendente maldito dos homens que o condenaram.

Ao ver o presidente, Felismino sente o calor da vingança que arde por dentro, mas também a impotência que o consome. É como se algo o retivesse, como se suas forças fossem drenadas pela própria terra que o ressuscitou. Afinal, ele sabe que o seu papel agora é outro; é um prisioneiro do tempo, condenado a caminhar sem descanso, a observar sem poder interferir.

Margarida, ao reconhecer o rosto de Felismino, sente seu corpo tremer até a raiz dos ossos. O espanto a derruba no chão frio da igreja, a boca seca, o coração descontrolado. E, num murmúrio abafado pela incredulidade, ela exclama:

— É milagre! É milagre!

Ali, caída no chão de pedra, sua vida desmorona como areia em um gesto infantil, e o controle lhe escapa; sua urina se espalha, um alívio desesperado para o medo e a angústia que ela carregou. Margarida sente que, naquele instante, o impossível retornou, trazendo consigo o peso do horror e da inevitável realidade de que nada é esquecido.

— Até quando os homens vão temer que as mulheres expurguem a própria dor à vista deles, nas colheitas, nas raminhas? – Felismino pergunta, observando-a com uma calma que a confunde.

Margarida o encara, aproximando-se com a força das lembranças, o olhar perdido num rosto que a correnteza não levou. Ela se ergue, sente seu cheiro, uma mistura de suor e tempo, e finalmente pergunta:

— És tu, homem? Tu que me deixaste aqui, perdida na terra árida e cheia de cheias, quando tudo que tínhamos eram as promessas? És o mesmo homem que pensava nunca mais voltar?

Ele a toca, a mão calejada como os campos que um dia trabalharam juntos, e responde com um suspiro quase esculpido em pedra:

— Ainda sou eu, Margarida. As águas me seguraram, o mundo me prendeu em suas curvas, mas agora retorno, entendo a língua das secas e das enchentes. Sou milho em dias de esperança, mas sou tronco seco quando vejo além do visível.

Margarida segura a mão de Felismino com uma força que carrega décadas de saudade, como se quisesse impedir que ele escapasse novamente. Seus olhos, marejados, revelam a ternura e o cansaço de quem resistiu ao tempo com a bravura de quem nunca deixa a terra e suas sementes. Eles compartilham uma compreensão muda sobre os filhos que foram embora, levados pelo vento das promessas quebradas e dos sonhos que a vida não cumpriu.

— Aqueles meninos, Felismino… foram para além do que podemos ver. — murmura Margarida, com a voz quase tragada pela brisa.

— E aqueles homens? Os homens da cidade, os antigos? — ele pergunta, como quem exuma velhas lembranças.

Margarida respira fundo, o olhar fixo em algum ponto perdido, e responde:

— Todos mortos, uns de estafa, outros de tanto sonhar acordado, uns de tanto ir à praça falar da vida dos que já partiram. Outros morreram de remorso e alguns de silêncio. Mas houve quem morreu de morte matada.

— Quem? — ele pergunta, com a voz pesada de um pressentimento que o tempo nunca apaga.

Ela o olha nos olhos, as palavras firmes como se confessasse um segredo há muito guardado.

— Agora sei que foi você, Felismino, o homem assassinado.

Ele esboça um sorriso amargo, e sua resposta é como uma repercussão de uma verdade profunda:

— Um homem morre todos os dias quando se entrega a viver intensamente e, ao mesmo tempo, tenta reviver a própria vida.

Margarida balança a cabeça, e com um brilho nos olhos, diz baixinho:

— Nestes trinta anos, nunca deixei de ir trabalhar azágua. Sempre usei as tuas técnicas de monda e sementeira, como me ensinaste.

Felismino a observa, sua expressão mistura orgulho e dor.

— E o que diziam os rapazes? — pergunta, sabendo da resposta.

— Diziam que era atrevimento uma mulher saber trabalhar a azágua melhor que um homem. — Ela suspira, com um leve sorriso nos lábios, e completa: — Mas é típico do badiu, machão. Isso há de passar.

Ele ri, uma risada leve, mas cheia de compreensão.

— Marido, voltaste mais compreensível. Agora… agora me compreendes? — Ela pergunta, as palavras saindo como um sussurro, uma súplica.

Felismino a encara, e em seus olhos há algo novo, algo amadurecido. Com uma voz baixa, ele confessa:

— Só queria te pedir desculpas por aquele dia, o dia em que me pus contra ti por ter feito disparado um peido à frente dos senhores da cidade, lá na propriedade do antigo presidente. Talvez… talvez eu só tivesse medo de admitir que a minha mulher era corajosa, talvez até mais do que o próprio marido.

Ela sorri, com a ternura de quem recebeu as palavras que esperou por toda uma vida.

— Deita, marido. Deita. Amanhã temos mais uma correria.

Ele hesita por um instante, como se absorvesse a verdade que ela lhe oferece. E então, segurando sua mão, ele responde:

— Não, é mais uma monda, minha mulher. Amanhã, como nos velhos tempos.

Felismino deita ao lado de Margarida, e entrelaça-se junto às "folhas de milho" que agora o cercam como um abraço antigo e silencioso. A noite se adensa ao redor deles, preenchendo o ar com a quietude de um pacto renovado, como se a própria terra e as estrelas testemunhassem aquele reencontro. O silêncio que se instala entre eles não é vazio; é um silêncio fecundo, onde palavras não ditas germinam, e sonhos antigos renascem. Ali, entre a aspereza da terra e a suavidade do milho, eles selam uma paz tão silenciosa quanto a respiração da madrugada.

-Estava tão cansada, foram as últimas palavras de margarida naquela noite. 

E assim, o tempo faz sua mágica. Quando o primeiro raio de sol rompe o horizonte, tingindo o céu de um dourado suave, Margarida e Felismino já não estão. O espaço onde estiveram guarda agora apenas uma leve marca na terra, como um vestígio de quem foi sem nunca realmente partir. Eles foram feitos de memória, de um silêncio que se espalha como as raízes das árvores, como os murmúrios de amor que a vida não apaga.

Os pássaros, despertos pelo amanhecer, começam a cantar, enchendo o ar com um tributo doce e suave. Seus cantos enredam-se pelo campo, chamando por Margarida e Felismino, seus nomes repetindo entre as árvores e sobre os montes, como um segredo partilhado entre a terra e o céu. E enquanto a luz do dia se espalha, é como se cada folha, cada pedra, cada gota de orvalho os guardasse em uma lembrança que floresce a cada amanhecer, uma história que se perpetua no canto dos passarinhos, que, fielmente, recordam os amantes da terra. Naquele dia claro, Margarida e Felismino se tornaram parte da paisagem, fundidos no verde das folhas e na dança das sombras, eternos na memória dos campos, na linguagem do milho e no canto incessante dos pássaros.

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Dexam Sabi Cabo Verde: A Canção da Terra e do Milho - por Mário Loff
A Canção da Terra e do Milho - por Mário Loff
Os pássaros, despertos pelo amanhecer, começam a cantar, enchendo o ar com um tributo doce e suave.
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