A realidade cultural em Cabo Verde revela um contraste perturbador entre a valorização da música e o desprezo pela literatura.
Literatura à Margem - por Mario Loff
Evite ler demais, na verdade, não leia nada; não faz bem a ninguém. Da próxima vez que me visitar, traga um livro de John Steinbeck. – Nëkæth
Em Cabo Verde, retumba uma inquietante sensação de que, em tempos pretéritos, o país experimentou uma era de esplendor literário, mesmo sob o jugo opressivo do colonialismo. No calor da luta pela emancipação, os cabo-verdianos se reinventaram, buscando a sua voz nas páginas da literatura brasileira e portuguesa, entrelaçando-se com as obras de autores que, com coragem e determinação, desafiaram o regime vigente.
Voltaram-se também para os clássicos de Portugal, cujas narrativas retratavam realidades telúricas e humanas, imbuídas de um espírito indomável de resistência e bravura. Dessa rica tessitura de leituras, brotou a expressão da alma crioula, e muitos dos nossos escritores, que hoje são venerados como clássicos, emergiram desse contexto vibrante, capturando nas suas obras o destino e a essência do homem cabo-verdiano.
É bom lembrar que o renomado escritor angolano, José Eduardo Agualusa, refletiu sobre a literatura cabo-verdiana, dizendo: “Penso que a literatura cabo-verdiana prometia mais do que aquilo que acabou dando. Quando a gente olha para o passado da literatura cabo-verdiana, para os escritores que existiam no séc. XX, era de se presumir que tivessem surgido mais escritores após a independência.”
Apareceram escritores, e, nos tempos que correm, continuam a despontar jovens talentos. Contudo, como me confidenciou a amiga escritora Natacha Magalhães, “o mercado cumprirá o seu papel mostrar quem é escritor”, mas é a cultura que realizará a verdadeira transformação ao revelar o artista e o erudito que reside neste campo. Para que a sua voz e a sua pena se afirmassem, muitos foram forçados a deixar a terra que os viram nascer, confrontados pela inexorável condição do país e pela dura realidade que envolve o povo.
Neste solo, onde a ânsia de criar e pensar pela via literária parece vagar como sombra errante num viridário de esperanças perdidas, a ambição literária é frequentemente macerada, relegada ao esquecimento. Existem, porém, raras exceções, oportunidades que surgem para uma elite literária que, embora reconhecida, já não ressoa nas almas do povo e se vê envolta numa teia de prestígios e influencias, afastada da essência da experiência humana.
Ser um escritor que não levanta poeira social, que não provoca as fundações do mundo, é carecer da profundidade que apenas a verdadeira arte concede; é estar desprovido da erudição que eterniza o nome ao longo dos milénios. Habitar um país onde cada afirmação gera descontentamento, onde o povo se magoa e se inquieta com facilidade, e onde as letras partidárias são mais celebradas que as palavras que forjam o legado de um escritor, é como possuir cultura sem ser genuinamente cultural; é ter matéria intelectual sem ser verdadeiramente culto. No âmago deste dilema, é preferir um Tranka Fulía a um Ary Kueka, Carlos Mendes ou até Beethoven; é escolher Paulo Coelho em vez de José Luiz Tavares ou Hemingway. "O tempo é a substância de que sou feito", disse Jorge Luís Borges, e neste contexto, sentimos que o tempo e o espírito criador de muitos se esvai em vão, num país onde a glória é frequentemente reservada à superficialidade.
Este pensamento convida-nos a uma meditação profunda sobre a verdadeira essência da criação literária e cultural. A necessidade de um despertar é premente, um despertar que restaure o valor inato à voz de cada autor, seja qual for a sua origem ou a sua circunstância. Apenas assim poderemos resgatar a integridade da nossa cultura e elevar o pensamento literário ao pedestal de honra que merece, fazendo-o repercutir-se além das fronteiras do tempo.
Como magistralmente expressou o autor nigeriano Teju Cole: "A arte não é um espelho para refletir a realidade, mas um martelo para moldá-la." O verdadeiro desafio reside, então, em transformar essa realidade inativa numa vibrante colgadura de ideias, onde cada voz encontra o seu espaço e cada pensamento a sua ressonância. Que o som da literatura entoe, e que as vozes que, embora afastadas, jamais esquecem a terra que as moldou, reverberem pelo horizonte cultural, transformando o mundo pela palavra.
Diante das obras antes mencionadas, por mais que possuam um valor cultural inegável, elas não bastaram para colocar Cabo Verde entre as nações que mais leem no mundo, apesar de hoje termos autores renomados, mas, idolatrados fora do país, ou idolatrados aqui dentro parcialmente. Um dado sobre a leitura no mundo é que a Índia, com uma média de leitura superior a 10 horas semanais por pessoa, ocupa a liderança do ranking mundial desde 2005, seguida por países asiáticos como a Tailândia, China e Filipinas, e, na África, pelo Egito. Em contraste, Cabo Verde permanece ausente desta lista, um alerta preocupante que não podemos mais ignorar, mesmo com dois prémios camões.
Como bem afirmou o autor moçambicano Mia Couto: "A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos." Neste caso, alguma pobreza que enfrentamos é cultural e intelectual, conforme as prioridades que se tem dado a cada área no país, a cultura não é só a música. É imperativo que abandonemos a superficialidade das aparências e invistamos profundamente no conhecimento, na leitura e na formação cultural, para que possamos efetivamente transformar nossa realidade.
II
É verdadeiramente irônico que, em Cabo Verde, um político governante tenha mais facilidade em publicar revistas para promover sua imagem e governação do que um escritor tem para lançar um livro durante o mandato de um presidente ou governo. A vida dos autores, especialmente daqueles que almejam firmar seu nome no cenário literário, tem sido um exercício de perseverança e coragem. Muitos estudam, leem, criam suas agendas literárias e até inventam movimentos, mas enfrentam uma realidade difícil, onde a jornada parece uma montanha-russa de obstáculos: ao se aproximarem do topo, frequentemente voltam à estaca zero.
No entanto, a força de vontade é maior do que qualquer montanha, e a ideia de desistir é impensável para quem acredita no poder transformador da literatura destas ilhas. Associações literárias têm surgido em diversas ilhas, inspiradas por exemplos como a ALTAS. Contudo, é essencial que esses líderes literários evitem ser "bem comportados". Como alertava o autor norte-americano James Baldwin, "O papel do artista é perturbar a paz." Os escritores não devem ser dóceis ou acomodados; devem afiar os dentes com palavras, como quem afia a mente, iluminado pela obra “Paraíso pagado por um trovão” de JLT. Cada manhã deveria começar com a leitura de quatro páginas dessa obra, impulsionando a gaseificação e desratização criativa da alma.
Em tempos, tivemos a oportunidade de promover atividades literárias de variadas dimensões, desde a fundação de associações literárias a festivais e feiras do livro. No entanto, esses esforços frequentemente exigiram sacrifícios pessoais consideráveis, pois o país tende a valorizar apenas as iniciativas que contam com a presença dos consagrados e elitizados. Além disso, há uma dependência de iniciativas estrangeiras, como se precisássemos da legitimação externa para deixar de ter vergonha de exibir as nossas próprias riquezas literárias.
A maior vergonha talvez resida nos encontros da Macaronésia, onde, em sua maioria, participam escritores estrangeiros, com poucos cabo-verdianos, e que ocorrem em espaços inacessíveis ao grande público. Estes encontros, tal como os eventos de encontro de escritores da lusofonia que há mais de “500 anos” reúnem quase as mesmas figuras, introduzem um ou dois novos autores a cada edição, como se isso fosse suficiente para mascarar a falta de verdadeira renovação literária no grupo e em especial em Cabo Verde.
III
Embora sejamos dignos de encómio pela independência territorial conquistada, continuamos a recorrer aos mesmos manuais e modelos na nossa língua comum, o português, perpetuando hábitos de leitura de mais de dois séculos. Livros têm sido despejados no arquipélago, sem que se exija qualquer plano de preservação, seleção, divulgação ou iniciativas de leitura, tornando claro que, em muitas partes do país, o livro e a leitura não são prioridades reais. Implementar essas mudanças significaria ameaçar interesses instalados, que veem o status quo como garantia de segurança.
Neste contexto, assona o pensamento do autor chinês Lu Xun, que afirmou: "A esperança não é algo concreto, mas uma coisa que se constrói. Ela só existe quando alguém faz um caminho por onde todos passam." Em Cabo Verde, precisamos traçar um novo caminho, onde a literatura seja acessível a todos e seja um compromisso, e onde o futuro das nossas letras não dependa da validação externa ou da elite literária, mas de um esforço contínuo e coletivo.
Na comparação com países que implementaram programas de leitura bem-sucedidos, como a Finlândia, onde a leitura é promovida desde a infância e os bibliotecários desempenham um papel vital na educação, vemos um modelo a ser seguido. Outro exemplo é o Quênia, que desenvolveu uma estratégia nacional de leitura que não apenas aumentou a taxa de alfabetização, mas também estimulou a produção local de literatura. Em contraste, na Somália, onde a guerra e a instabilidade política resultaram em um colapso da infraestrutura educacional e em um acesso extremamente limitado aos livros, a ausência de uma cultura de leitura levou ao empobrecimento literário.
Portanto, é urgente que Cabo Verde reconheça a importância da leitura e da literatura como pilares fundamentais para o desenvolvimento cultural e humano.
O panorama literário em Cabo Verde, embora repleto de potencial, enfrenta desafios que comprometem a sua evolução e disseminação cultural. A relação ambígua entre o acesso a livros, proporcionado pela cooperação portuguesa, e o verdadeiro desenvolvimento literário é um tema que merece uma reflexão profunda. Por um lado, a distribuição de manuais e livros é uma iniciativa que, à primeira vista, parece benéfica. No entanto, a falta de um programa estruturado de incentivo à leitura e a integração com as atividades escolares revela que essa generosidade pode não se traduzir em um impacto real na formação cultural da população. As bibliotecas municipais e comunitárias, que deveriam ser centros vibrantes de aprendizado e troca cultural, muitas vezes se tornam meros depósitos de livros, subutilizados e sem uma orientação adequada.
O que se faz necessário é uma verdadeira rede de colaboração entre escolas, bibliotecas, escritores e a comunidade. Programas que envolvam lançamentos de obras, palestras e debates nas escolas e nas comunidades poderiam revitalizar o cenário literário, oferecendo aos escritores emergentes a oportunidade de se conectarem com o público e de contribuírem para a formação de novos leitores. Isso requer uma abordagem mais integrada, onde as bibliotecas atuem como agentes ativos de promoção da leitura, e não apenas como espaços passivos.
A questão da formação dos profissionais envolvidos também é crucial. A falta de bibliotecários qualificados e com uma visão clara do seu papel na sociedade tem um impacto direto na funcionalidade e na relevância das bibliotecas. Esses espaços precisam de gestores que entendam a literatura como uma forma de educação e promoção cultural, capazes de implementar projetos que resgatem e valorizem a produção literária local.
A realidade das bibliotecas em Cabo Verde é muitas vezes marcada por um descompasso: enquanto há uma abundância de livros, a conexão com a produção literária contemporânea é fraca. O resultado é que muitos jovens escritores permanecem à margem, sem o suporte necessário para desenvolver e divulgar suas obras. Além disso, a concentração de atividades em eventos elitizados, que muitas vezes não são acessíveis ao público em geral, contribui para a desconexão entre os autores e os leitores.
É alentador perceber que novas propostas estão surgindo, como a iniciativa do novo ministro da Cultura de levar bibliotecas móveis às comunidades. Contudo, essa é apenas uma parte do que precisa ser feito. O real desenvolvimento cultural em Cabo Verde passa pela construção de uma rede literária sólida, que não só promova a leitura, mas que também celebre e valorize a riqueza da literatura cabo-verdiana, apoiando os novos talentos e garantindo que a literatura não seja apenas um privilégio de alguns, mas um patrimônio acessível a todos.
O desafio é grande, mas a vontade de transformar e enriquecer a cena literária do país é ainda maior. Se Cabo Verde conseguir unir esforços e investir na educação e na literatura, poderá, um dia, figurar entre as nações que mais leem no mundo, proporcionando a todos os seus cidadãos o direito a uma formação cultural rica e diversificada.
A realidade cultural em Cabo Verde revela um contraste perturbador entre a valorização da música e o desprezo pela literatura. Durante uma homenagem em uma Escola Secundária de Santiago, muitos professores admitiram que suas atividades de lazer se voltavam para festas e eventos recreativos, relegando as iniciativas intelectuais a um segundo plano. Embora a paixão pela música — uma característica indiscutível da identidade cabo-verdiana — seja compreensível, isso não deve eclipsar a necessidade de uma valorização equivalente da literatura.
É alarmante observar que um artista musical pode ser recompensado com até 1.000 contos por uma hora de apresentação em festivais, enquanto os escritores frequentemente permanecem invisíveis e ignorados. A literatura não ocupa uma prioridade para o Estado, que promove sua cultura literária de forma insatisfatória.
A ausência de um festival literário de renome internacional na cidade da Praia, capital do país, é um sinal claro dessa negligência e pudicícia. Celebrar dois Prémios Camões deveria ser motivo de orgulho nacional e um incentivo ativo à literatura. No entanto, a realidade é que nossos autores, mesmo os reconhecidos internacionalmente, permanecem limitados a círculos fechados, sem o reconhecimento público que merecem.
A cultura literária em Cabo Verde precisa de um imporão grande. É fundamental que a literatura seja elevada à condição de prioridade nacional, devolvendo-lhe a voz vibrante que outrora reverberou nas nossas ilhas. A sensação de impotência, mesmo em relação a grandes nomes das letras, diante de decisões políticas e administrativas, é verdadeiramente desalentadora. Precisamos de uma alteração radical nas políticas culturais nesta área pelo menos, exigindo dos nossos líderes um comprometimento sério com a promoção da leitura e da produção literária. A literatura deve ser vista como uma necessidade essencial, tal como a alimentação, pois um povo que lê é um povo mais preparado para enfrentar os desafios do futuro. Se os nossos maestros não têm a cubagem ou a voluntariedade de executar essas renovações, então é hora de cederem o espaço a quem está disposto a arrogar esse dever com ânimo e conspeção.
Como afirmou o escritor espanhol Miguel de Unamuno: "Só o homem que lê é um homem livre." De fato, a leitura liberta e abre horizontes, algo que não pode continuar a ser negligenciado em Cabo Verde.
A revolução que precisamos é tanto económica quanto cultural e literária. Como escreveu o português José Saramago, "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever." Esta afirmação enfatiza a importância de sabedoria e conhecimento, que transcendem as limitações materiais. Todavia, é nosso dever criar um ambiente onde o conhecimento seja acessível e a literatura uma parte central da vida. Só assim construiremos um Cabo Verde verdadeiramente independente, consciente do seu papel no mundo e capaz de cultivar uma rica tradição literária que inspire e fortaleça a nossa identidade nacional.
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