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Cães de Bakanorte - por Mário Loff

As gentes de Bakanorte, numa submissão quase automática, tinham aprendido a sorrir com o calor do sol, mesmo quando a sombra da dúvida crescia em seus

 


Cães de Bakanorte - por Mário Loff


Vinha o Busulnaku a correr desde o fundo do centro de Bakanorte, o coração a martelar-lhe no peito, enquanto a grande mancha de pessoas se aglomerava ao lado da casa do senhor Paduku. As vozes ecoavam como um coro dissonante, cheias de excitação e receio, uma tempestade de murmúrios que se intensificava a cada passo que dava. O senhor Paduku, sempre atarefado, era conhecido por vender de tudo na cidade: desde a banha de cobra, uma cura milagrosa, até ao fio dental, que prometia remover as mais absurdas palavras que, como resquícios de uma vida passada, ficavam retidas nos dentes dos habitantes e se deterioravam com o passar do tempo.

Naquela manhã, a cena à sua frente era um espetáculo em si. A última vez que as pessoas tinham retirado as palavras dos dentes, a cidade escolhera novos senhores, figuras imponentes que se apresentaram em fatos de quinhentos, pesados como a opressão que já pairava sobre Bakanorte. Eles entraram sob o sol ardente, os seus trajes brilhando e ofuscando a vista, proclamando que era belo estar sob aquela luz intensa, onde os sorrisos surgiam forçados, quase como um ritual a ser cumprido.

As gentes de Bakanorte, numa submissão quase automática, tinham aprendido a sorrir com o calor do sol, mesmo quando a sombra da dúvida crescia em seus corações. Paduku, ali na sua loja, contemplava a agitação do povo, a balança das suas ambições pesando nas suas mãos calejadas. Observava e comentava, os olhos afiados como garras, absorvendo a cena que se desenrolava à sua frente.

— Graças a Deus, tenho bons clientes, mas os senhores da cidade, nestes quatro anos, negociaram muito bem comigo. Mas também os bakanortenhos sempre foram as minhas principais riquezas e a fonte de rendimento que manteve a minha loja.

O dilema que se formava na mente de Paduku crescia em proporção à mancha no chão, agora visível desde longe. Sabia que, cedo ou tarde, teria de tomar uma decisão que mexeria não apenas com o destino da sua loja, mas também com o equilíbrio frágil que sustentava aquela cidade. Havia uma tensão no ar que ele ainda não compreendia bem, mas sentia nos pequenos gestos dos clientes, no peso das moedas que trocava no balcão, no modo como os olhares evitavam-se uns aos outros, como se todos já soubessem o que estava prestes a acontecer.

Busulnaku aproximava-se cada vez mais, e Paduku, com os olhos semicerrados, tentava discernir o motivo daquela correria. Não era comum ver alguém da cidade com tanta pressa, ainda mais um Busulnaku, conhecido pela sua calma habitual e por resolver os seus problemas com a serenidade de quem sempre espera que o tempo seja o verdadeiro juiz nas horas de dar aquele salto no cais da cidade ao meio dia. No entanto, naquela manhã, algo o empurrava, como se a grande mancha que crescia à porta da loja fosse um símbolo de algo maior, uma verdade que já não podia ser ignorada.

Quando Busulnaku finalmente chegou à loja, ofegante, seus olhos buscaram os de Paduku com uma urgência que este não via há muito tempo. Aproximou-se do balcão, apoiando as mãos suadas na velha madeira, e parece ter dito em voz baixa, quase como se temesse que o próprio ar pudesse trair-lhe as palavras mexendo com a cabeça e as orelhas:

— Paduku, algo está para acontecer. Os senhores da cidade… eles preparam algo. Ou estás connosco, ou contra nós.

O vendedor, apanhado pela gravidade das palavras, engoliu em seco.

Paduku sacudiu a cabeça, como quem tenta livrar-se de um pensamento pesado que teima em se agarrar. O papelinho, apertado em suas mãos, parecia ter o peso de uma pedra. Sentia-se encurralado entre duas forças que não compreendia por completo, e o medo começava a crescer como uma sombra. O rapaz que lhe trouxera o recado observava-o com os olhos grandes, inocentes, esperando uma resposta, mas Paduku não tinha palavras para lhe dar. Fechou o papel com um gesto seco e murmurou com uma voz que tremia ligeiramente:

— Eu sou uma figura importante na cidade, não posso estar envolvido nestas coisas.

Do lado de fora, os murmúrios da multidão tornaram-se mais altos, como uma onda que se aproxima da costa. Paduku viu, pela porta entreaberta, Busulnaku caminhar em direção àquela massa de pessoas. O seu andar firme contrastava com a agitação dos que o aguardavam, e logo que se aproximou, o som de vozes eufóricas repetiu pela rua. A multidão, ao avistar Busulnaku, explodiu em gritos de alegria, como se a sua presença fosse um sinal de que algo finalmente começaria a acontecer. Paduku sentiu um aperto no peito, um pressentimento de que tudo estava prestes a mudar.

Mas no meio daquele contentamento, a ausência de Paduku era notada. Ele, o homem que sempre soubera mover-se nos bastidores, enviando e recebendo cartas, puxando cordas invisíveis nas acessórias ocultas para garantir que nada saísse do seu controlo, sempre contando partidas e fazendo as pessoas na praça sorrirem até mijar, e sempre ficava a ideia de que ele era o bom homem da cidade o exemplo a seguir, nunca ficou a ideia que jogava em duas equipas. Apesar das suas tentativas para dissuadir as pessoas de se reunirem, insistindo que quem governava Bakanorte eram os próprios bakanortenhos, a maré parecia estar a mudar, arrastando consigo aqueles que antes não se atreviam a desobedecer aos senhores da cidade.

A multidão era um retrato da desordem organizada. Na frente da fila estavam os meios-cegos, que, embora já não enxergassem com clareza, ainda mantinham alguma lealdade aos senhores da cidade. Reconheciam-lhes uma humildade distante, uma condescendência que, de alguma forma, os fazia sentir-se necessários, ainda que à margem. Atrás deles, numa confusa segunda fila, encontravam-se os deficientes de memória, aqueles que dependiam completamente dos senhores para sobreviverem, até para se lembrarem onde respirar. Eram gente esquecida, que só recuperava algum lugar na comunidade nas ocasiões festivas, como no Natal, quando lhes era permitido entrar na praça e brincar por breves momentos, como um gesto de caridade que logo se dissipava.

Eram essas as pessoas que agora se juntavam, a multidão que reclamava o seu lugar e o seu direito de ser mais do que uma lembrança sazonal. Paduku, preso à sua indecisão, observava tudo pela janela com o coração pesado. Sabia que, se fizesse o menor movimento em falso, poderia ser sugado por aquela corrente de insatisfação e revolta. Num momento, sentiu-se mais isolado do que nunca, entre o medo de perder a sua posição e o temor de ser engolido por aquela tempestade social que se formava lentamente à sua porta.

Paduku, com os olhos semicerrados e a testa franzida, observava o rebuliço na sua loja. Enquanto os homens assinavam o cheque, ele dirigia-se à multidão que o chamava da rua, acenando de leve, num gesto de quem está no controlo. Sabia que tinha o poder nas mãos, mas também o peso de ser o homem que tinha de manter o equilíbrio entre os interesses da cidade e os seus próprios.

— Já vivemos há muito nesta cidade — começou um homem na frente da multidão, um dos meios-cegos, com a voz rouca, como quem revive uma memória amarga —, e na primeira vez que esses senhores chegaram, indicaram-nos o lugar apropriado para respirar. Mostraram-nos a reclusão daquilo que nos mantém vivos, o nosso fôlego.

A sua voz carregava uma tristeza antiga, misturada com um orgulho ferido, como se cada palavra fosse um golpe contra as correntes invisíveis que o mantinham preso.

— É verdade, é verdade — respondeu outro homem, da segunda fila. Este tinha um sorriso forçado no rosto, um resquício de gratidão misturada com mágoa. — Eles sorriam para mim, sabes? Era lindo… nos últimos tempos, percebi que o sorriso deles nunca mudou, é o mesmo sorriso, só que tomaram o sol só para eles. — Fez uma pausa, uma espécie de risada amarga escapando-lhe dos lábios. — Agora vejo: não há novidades nenhumas. Não me vão enganar de novo. O sol deveria ser para todos, os senhores da cidade se habituaram, ao sol, só para eles. Com magoa lamentou. 

A multidão murmurava em concordância, e o peso da frustração coletiva parecia fazer o ar vibrar. Mas logo, a voz de Dona Interioranna cortou o ambiente como uma faca afiada, carregada de uma dor silenciosa.

— Tiraram-me a esperança quando empregaram a minha filha. — Ela vestia de negro, símbolo de luto não só pelo marido, mas por um tempo em que acreditava que o trabalho e a dignidade andavam de mãos dadas. — O meu marido morreu de desgosto no agosto, posto fora do trabalho, pagando-lhe sem que ele pudesse erguer as mãos para trabalhar. Era o único modo que ele sabia viver. Trabalhar, nós queríamos sonhar, e a minha filha foi presa ao trabalho de estado e se embarrigou do senhor humilde que prometera largar a esposa para ficar com ela. Lhe avisei que homem nenhum ficava com meninas de interior do interior, ainda que ele é um homem com poder de decidir com caneta e o pai dela a machadada, mas morte ganha sempre. Sempre, sempre.

As palavras dela penetraram fundo na multidão, que agora sentia o peso não apenas de suas próprias dores, mas de uma verdade coletiva: o sistema os havia usado e descartado. Os nervos começaram a se acender, como faíscas prestes a incendiar um barril de pólvora.

O homem, com um sorriso humilde, parecia tecer uma trama de enganos, envolto numa confusão que tornava difícil distinguir a verdade das suas palavras. A plateia, em uníssono, exclamou:

— É um embusteiro, compulsivo e ardiloso, um preto de maus bofes!

A voz coletiva se reproduziu pelas paredes do estabelecimento, e, no âmago de sua preocupação, Paduku não pôde evitar que a ansiedade se instalasse em seu peito.

Lá dentro, Paduku tentava manter a sua expressão neutra, enquanto indicava com o dedo onde o cheque deveria ser assinado. Mas, ao ouvir os clamores do lado de fora, empurrou os óculos sobre o nariz e, sem se conter, murmurou para os homens à sua volta:

— Vê se apartas esses coitados que estão prestes a criar confusão.

Porém, no mesmo instante, os seus olhos avistaram o senhor doutor Humilde, entrando pela primeira vez na sua loja. Paduku transformou a expressão, num misto de deferência e adulação. Voltando-se para dentro, estalou os dedos, chamando as empregadas com a urgência de quem via uma oportunidade de ouro.

— Jovelina, Tamára! Venham limpar a cadeira para o senhor Humilde se sentar.

As duas meninas correram, uma com um pano amarelo e outra com um vermelho, esfregando a cadeira como se dela dependesse o próprio destino. Tamára, numa voz baixa, mal conseguindo esconder o brilho nos olhos, sussurrou:

— Olha, ele sorriu para nós!

Jovelina, com um olhar mais duro, respondeu num tom enviesado:

— Não, não, ele sorriu para ti.

— Que seja, só o sorriso dele basta.

Jovelina, apertando o pano entre os dedos, quase que cuspiu as palavras de volta:

— E a barriga vazia? E os nossos sonhos de ter uma vida melhor? Tudo fica dependente de um sorriso desses senhores?

— Eles são os senhores da cidade! — respondeu Tamára, quase como se tentasse justificar o próprio servilismo.

Mas Jovelina, com uma determinação que começava a despontar no fundo do seu peito, murmurou:

— Primeiro, a cidade é nossa. Eles são apenas os convidados. Vão partir, e nós ficamos. São trapaceiros, todos eles.

Antes que Tamára pudesse responder, Paduku, que ouvira a conversa, voltou-se, os olhos acesos de espanto.

— O quê? O que disseste, Jovelina?

Foi então que o senhor Humilde, com um sorriso afiado, como uma lâmina que corta sem ser vista, interveio, falando alto o suficiente para que todos ouvissem:

— Ela já se sente livre, resultado dos nossos investimentos. É isso mesmo, Jovelina, tens de reclamar e dizer as coisas como elas são. Contudo a cara do senhor humilde ebulia de cólera e sorriso simulado. 

Paduku, por um instante, ficou confuso, mas o sorriso afetuoso de Humilde feito de repente só para ele, acompanhado pelos outros homens que o cercavam, fez com que a sua expressão de confusão se transformasse em subserviência.

— Sim, sim, às vezes penso demais. — Tentou rir, como quem procura encobrir a inquietação.

— Vêem? — continuou o Humilde, satisfeito. — Os nossos investimentos fazem efeito. Ela já se sente melhor.

No fundo da loja, já se encontrava a Tamára, olhava para Jovelina, agora tomada por uma mudança. A raiva, antes contida, começava a tomar forma no rosto dela, que observava o mundo com novos olhos. Tudo à sua volta parecia um embuste. As palavras de Paduku, os sorrisos simulados dos senhores… tudo era idolatria, uma mentira que os mantinha presos ao chão enquanto a cidade afundava-se.

— É tudo uma ilusão, um espetáculo — murmurou Jovelina, como se falasse consigo mesma.

Lá fora, a multidão continuava a gritar:

— Paduku, acode-nos! Paduku, acode-nos!

Mas dentro da loja, ele já havia feito a sua preferência.

O interior do estabelecimento fervilhava com um silêncio tenso, enquanto o senhor Humilde, já descomposto pelo azedume de suas próprias promessas, vociferava de dentro, a raiva brilhando nos olhos. "Vou arranjar novos sorrisos, ouviste? E vou passar a ser humilde vinte e quatro horas por dia! Só para que possas respirar a nossa paz confrangida, Paduku, para que sintas o peso do fardo de ser parte desta cidade maldita!" A sua voz, ainda que oferecesse uma ressonância de benevolência, transbordava de um sarcasmo brutal, que perfurava o ar.

Paduku, sem se dar ao trabalho de responder, caminhou até à porta com passos firmes, quase mecânicos. Fez um sinal com a mão, como se um simples aceno pudesse apagar o que fora dito, e esboçou um sorriso que oscilava entre o cínico e o despreocupado. Os senhores da cidade, em suas posturas severas, despediram-se com olhares que oscilavam entre o medo e a reverência. No fundo, ninguém sabia ao certo onde começava ou terminava a satisfação de Paduku.

Dando ordens secas às duas empregadas, como se fossem marionetes a serem movidas pelo fio invisível de sua autoridade, ele deixou a loja e imergiu na multidão. Não demorou muito até que Busulnaku chegasse, com o corpo imponente a cortar a atmosfera como uma lâmina cortada e posto ao lume, incômodo, fora do lugar, mas impossível de ignorar.

— Quem organizou este ajuntamento? — a voz de Paduku, agora gélida, cortou o ar como um açoite.

Os rostos à sua volta hesitaram, olhos baixos, murmúrios inquietos se formaram, mas apenas uma senhora se atreveu a responder:

— Olhem, o Busulnaku... — apontou, a voz entre o desprezo e o escárnio. — Aqui, nesta hora ele deveria estar no mar, afogando-se na sua rotina diária, não é assim que o badiu quer viver?

Paduku encarou Busulnaku com uma intensidade mordaz. — Estranho... — zombou, a voz carregada de desprezo. — O Busulnaku, que nunca perde seu banho, agora a aventurar-se pelas entranhas da cidade. — O sarcasmo, afiado, pingava de cada sílaba. O ajuntamento esqueceu-se, por um momento, do motivo da reunião, capturado pela visão daquele homem deslocado.

Então, a explosão. Paduku, em um crescendo furioso, bradou:

— QUEM é o representante deste ajuntamento? — A palavra “quem” reverberava como um golpe.

Um homem, perdido na multidão, ergueu a mão trêmula, hesitante, lutando para ocultar o medo que o consumia. Ao ser chamado à frente, parecia carregar todo o peso daquela multidão em seus ombros curvados e dedo magricela e fino.

— O que tens a dizer? — Paduku demandou, cortante.

O homem, confuso, balbuciou: — Eu? Nada... — A covardia transbordava de cada palavra, e sua mão levantou-se num gesto acusatório em direção a Busulnaku, como quem aponta o culpado por um crime que não entende.

Paduku sorriu, mas o sorriso era um vácuo, um buraco negro que sugava toda a esperança. — Ah, Busulnaku, sempre o Busulnaku — começou, a voz afiada. — Escuta, escuta a mensagem do senhor Humilde. Ele diz que vais aprender a sorrir, mas não a sorrir como um homem... a sorrir como um cão amordaçado. — Seus olhos fulguravam uma fúria misturada a um prazer doentio.

Mas Busulnaku, tomado por uma ira primitiva, retribuiu a fúria. A sua resposta não veio em palavras, mas em um grito primal, profundo, quase animal. Uivou. Uivou como um lobo ferido que finalmente se revolta contra a dor e a submissão, um som tão desesperado que a multidão sentiu o coração apertar. A sua voz repetia, enfurecida, até que se esvaiu no ar, e então, como um grande corpo vencido, Busulnaku tombou.

No chão, Busulnaku jazia, a alma despida diante daqueles que nada tinham para lhe dar, exceto desprezo. Não importava o quanto lutasse, o quanto gritasse, a multidão permanecia impassível. Uma por uma, as pessoas foram se dispersando, as faces frias, insensíveis ao sacrifício, à humilhação que testemunhavam.

Quando todos estavam a se retirar, Paduku e seus homens se detiveram por um breve momento diante do corpo inerte de Busulnaku. Com os olhos meio fechados, ele ainda conseguia ouvir, mesmo que fraco, as últimas palavras que assonavam de Paduku e dos outros, palavras tão cruéis quanto inevitáveis:

— És tu o culpado. Quando devias ladrar, silencias. E quando devias silenciar, uivas como um tolo.

Busulnaku, com suas últimas forças, abriu os lábios num sorriso grotesco, doloroso, e num último esforço soltou um latido fraco, quase inaudível.

— Serve também para vós, cães de Bakanorte — murmurou ele, antes de dar o último suspiro. Ali, na poeira do chão que não sentira a água do mar naquele dia, Busulnaku morreu, levando consigo o grito dos desafortunados de uma cidade que nada perdoa. 

Desde aquele dia, Bakanorte nunca mais foi a mesma cidade.


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Dexam Sabi Cabo Verde: Cães de Bakanorte - por Mário Loff
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