A câmara estava a viver um momento de volubilidade profunda. Os cofres do município mal conseguiam cobrir as necessidades mais elementares
Gruzi Gruzi, é o mapa ou a mapa?
Decidiu-se, num consenso velado entre os líderes locais, que a melhor maneira de desviar o olhar da população das questões internas seria forjar um raconto arrebatadora. A acusação de que todos os solos de Bakanorte haviam sido vendidos pelos antigos senhores da terra surgiu como um ardil arriscada, mas com o potencial de causar um impacto incalculável. Era uma verdade de mentira, meticulosamente trabalhada para parecer irrefutável. A câmara estava a viver um momento de volubilidade profunda. Os cofres do município mal conseguiam cobrir as necessidades mais elementares, e os sinais de escassez iminente pairavam como uma nuvem escura sobre a terra. O murmurinho nas ruas era de descontentamento, e a fome que se avizinhava não só ameaçava os mais desprotegidos, mas também minava a legitimidade dos que governavam.
No centro dessa trama de manuseio estava Gruzi Gruzi, uma figura que, sendo admirada pelo seu entendimento e perseverança, também era temida pela sua audácia e falta de escrúpulos. Era um homem cuja fama ultrapassava os limites do município. Alguns viam nele um visionário, outros, um estratega frio, disposto a tudo para alcançar os seus fins. Trancado em casa durante dias, rodeado por montes de papéis, mapas e anotações, Gruzi Gruzi afundava-se numa análise obsessiva das questões que atormentavam a cidade. Cada pormenor era meticulosamente examinado, cada cenário, antecipado. A solidão não o incomodava; pelo contrário, parecia alimentar-lhe a mente afiada e implacável.
Enquanto isso, o presidente da câmara, talvez numa tentativa de escapar à pressão ou de respirar aliviado, aproveitou a agitação para tirar sete dias de férias e rumar a Lisboa. Lá, visitaria os amigos que tinham sido seus mecenas nas campanhas eleitorais. Não partiu de mãos vazias. Levou consigo amostras de terra cuidadosamente escolhidas, plantas detalhadas de localização e até um carimbo oficial – instrumentos simbólicos, mas fundamentais, que serviriam para atrair novos apoios e reforçar promessas de tempos idos.
Cada objeto que o presidente levava consigo havia passado pelas mãos de Gruzi Gruzi. A sua vasta experiência no município tornava-o não só um técnico de grande competência, mas também uma peça crucial na máquina política local. Tratava os assuntos telúricos – os terrenos, as divisões da terra, as apropriações e as concessões – com um zelo que impressionava tanto os aliados como os adversários. Esse rigor dava-lhe um estatuto dúbio: enquanto muitos o respeitavam, outros viam nele um homem perigoso, capaz de transformar dados técnicos em armas políticas.
Era nesse cenário de tensão presente e incertezas futuras que a narrativa sobre os terrenos começava a tomar forma. Mais do que uma simples estratégia para desviar as atenções, tratava-se de um plano engenhoso para moldar a opinião pública e garantir que o poder continuasse nas mãos de quem sabia usá-lo.
Certa tarde, num dos gabinetes pouco iluminados da câmara municipal, onde os papéis se empilhavam e o ar carregava o cheiro de madeira envelhecida, Gruzi Gruzi encontrava-se em reunião privada com um amigo e funcionário da autarquia. O homem, de rosto cansado, mas com olhos a brilhar de ambição contida, inclinou-se sobre a mesa e, em voz baixa, como quem partilha um segredo, murmurou:
– Caríssimo e magnânimo Gruzi Gruzi, um dia estaremos no topo e teremos uma voz nobre sobre esses assuntos.
O título pomposo era proferido com uma mistura de sarcasmo e respeito, duas qualidades que pareciam definir a relação entre os dois. Gruzi Gruzi, que já aprendera a desconfiar de louvores fáceis, permaneceu imóvel por um momento. A luz fraca da tarde, filtrada pelas persianas semiabertas, desenhava sombras angulosas no seu rosto, acentuando a profundidade do seu olhar penetrante.
Respirou fundo antes de responder, como se cada palavra pesasse na balança invisível de suas intenções:
– Da forma como as coisas estão, acho que esse dia vai demorar. Precisamos é de explorar a bondade dos outros, agir conforme o que eles valorizam e acreditam.
O amigo não respondeu de imediato. Em vez disso, sorriu, um sorriso que falava mais do que qualquer palavra. Era um sorriso de cumplicidade, daqueles que selam pactos silenciosos entre aqueles que navegam pelas águas turvas da política local. Ambos sabiam que a bondade à qual Gruzi Gruzi se referia não era algo puro ou caridoso, mas sim um recurso a ser manipulado com esperteza.
Riram juntos, um riso baixo, quase conspiratório, que soava como a glória de um jogo de xadrez invisível. Cada peça no tabuleiro – fossem os cidadãos desinformados, os terrenos à venda ou as histórias cuidadosamente moldadas – era movida com a intenção precisa de garantir vantagem. A metáfora do xadrez não lhes escapava, mas para Gruzi Gruzi, a diferença estava na ausência de regras claras. Ali, no jogo em que jogavam, a vitória não dependia apenas da estratégia, mas de quem conseguisse melhor manipular o juízo pública. O amigo, ainda com o sorriso estampado no rosto, reclinou-se na cadeira de madeira que rangia sob o seu peso e disse, em tom baixo:
– Que assim seja, caro Gruzi Gruzi. Vamos arrojar como sempre, com paciência e precisão. Afinal, o tempo é o único aliado que ninguém pode comprar, mas todos precisam saber usar.
Gruzi Gruzi não respondeu. Limitou-se a olhar pela janela, onde o sol já começava a desaparecer no horizonte. Naquele instante, pensou nas muitas tardes semelhantes que ainda viriam, cheias de risos disfarçados, estratégias perigosas e decisões que moldariam o destino de Bakanorte.
Mergulhado em pilhas de documentos amarelados pelo tempo, Gruzi Gruzi desfolhava mapas e relatórios com a atenção de quem não busca apenas respostas, mas também oportunidades. Entre os papéis que carregavam as marcas da história da câmara, surgiam fragmentos de conversas com o engenheiro municipal, um aliado valioso nas lides administrativas e, sobretudo, na construção de estratégias ousadas. A ideia que antes era apenas um sussurro agora ganhava forma, robustez e, para Gruzi Gruzi, um potencial transformador.
Numa tarde abafada, num salão onde o calor parecia sufocar as palavras e as tensões não ditas pairavam no ar, Gruzi Gruzi decidiu que era hora de jogar a carta final. A atmosfera, carregada de formalidade, foi rasgada quando ele se levantou da cadeira e, com uma irritação bem calculada, disparou:
– Meus caros, estou profundamente dececionado, tanto com o município quanto com os seus habitantes. Esta tempestade, esta confusão, tem de começar por nós.
Os presentes trocaram olhares rápidos, confusos e desconcertados. O presidente, sempre cuidadoso para não se comprometer, inclinou-se ligeiramente para a frente e perguntou:
– Como assim, Gruzi Gruzi?
A tensão na sala era palpável, quase se podia tocar. Gruzi Gruzi, ciente de que tinha o foco de todos, endireitou-se, ajeitou os óculos e, com uma frieza calculada, respondeu:
– Precisamos de criar uma história convincente. Algo que faça os outros acreditarem, com toda a certeza, que os antigos senhores da cidade venderam todos os terrenos disponíveis. Quando essa ideia estiver firmemente enraizada, nós, novos senhores, venderemos o que ainda não foi vendido.
O silêncio tomou conta da sala, pesado como uma tempestade prestes a cair. Os vereadores trocavam olhares furtivos, como quem avalia secretamente o risco e a audácia da proposta. O presidente, com os dedos tamborilando nervosamente na mesa, denunciava o desconforto e a necessidade de tempo para pensar.
Finalmente, um dos vereadores, talvez o mais ousado, rompeu o silêncio:
– E os munícipes vão acreditar nisso? E se começarem a questionar a veracidade dessa história?
Gruzi Gruzi esboçou um sorriso enigmático, quase desdenhoso.
– As pessoas acreditam naquilo que é dito com confiança e repetido sem parar. Uma mentira bem contada pode parecer mais verdadeira do que a própria verdade. E quem é que vai investigar? Estamos a dar-lhes uma explicação para os seus problemas, e isso é tudo o que importa.
Outro vereador, mais pragmático, interveio com ar cético:
– E se isso nos sair pela culatra? No fim, acabamos por ser culpados, não só pelo que fizermos, mas também pelo que os antigos administradores não fizeram.
Gruzi Gruzi virou-se para ele, o olhar afiado como lâmina:
– A chave, meu caro, é nunca sermos vistos como culpados. A história não é sobre nós, mas sobre eles. Enquanto todos olham para o passado, nós construímos o futuro... ou, pelo menos, aquilo que lhes parecerá o futuro.
O presidente, que até então se mantivera em silêncio, levantou-se lentamente. O tamborilar dos dedos cessou, substituído por um leve aceno de concordância.
– É uma ideia ousada, talvez até arriscada..., mas brilhante. Uma boa história tem o poder de moldar as perceções. Se é isso que precisamos para transformar Bakanorte, então que assim seja.
A sala foi invadida por um murmúrio nervoso, como se as palavras de Gruzi Gruzi tivessem criado uma onda invisível que se espalhava entre os presentes. Mesmo os mais hesitantes, aqueles com os pés ainda firmemente plantados no terreno da dúvida, começavam a ver o brilho da promessa que se ocultava nas palavras arriscadas. Cada rosto na reunião era uma peça, um veículo para consolidar o plano de Gruzi Gruzi, que, mais do que manipular, jogava com as fragilidades humanas.
Enquanto a reunião se arrastava, os mapas da cidade foram desdobrados sobre a mesa, revelando as artérias de Bakanorte, os espaços vazios e os territórios já ocupados. Gruzi Gruzi, com o olhar atento de quem conhece o jogo de cor, apontava para as zonas estratégicas, como quem coloca peças em um tabuleiro invisível. Cada detalhe era um tijolo na construção de uma história que, aos olhos do povo, seria tão sólida quanto o próprio solo que pisavam.
Foi naquele momento que Gruzi Gruzi compreendeu a verdadeira batalha que travava: não era apenas pelo domínio físico, mas pela conquista da imaginação coletiva. E, naquelas águas turvas, ele sabia que sairia vitorioso.
Um dos vereadores, o mais fiel ao presidente e ao sistema que sustentava a sua posição, foi o primeiro a quebrar o silêncio, após a proposta de Gruzi Gruzi. Ajustando o colarinho da camisa, como quem tenta esconder o nervosismo, disse, com um tom ponderado:
– Isso é arriscado, mas brilhante.
A aprovação, embora cautelosa, abriu as portas para que os outros, aos poucos, ajustassem suas posturas, já mais inclinados a seguir o jogo proposto. O presidente, ainda em pé, cruzou os braços, deixando escapar um sorriso contido, mas revelador. Um sorriso que denunciava o prazer da ideia que começava a tomar forma.
A conversa seguiu, agora mais tensa. O ar, antes carregado de indecisões, tornara-se pesado de significados ocultos. As palavras não carregavam mais apenas conceitos; eram armas de duplo sentido, como peças de um jogo que ninguém estava disposto a admitir jogar abertamente. Os olhares tornaram-se afiados, como facas que cortavam o espaço entre as intenções e os medos de cada um.
Gruzi Gruzi, sentindo o controle total sobre os rumos da reunião, inclinou-se ligeiramente sobre a mesa, seu dedo apontando para o mapa aberto de Bakanorte. As linhas e as marcas, traçadas pelos antigos administradores, pareciam agora vulneráveis, como presas fáceis para aqueles que se consideravam mestres da política local.
– Meus senhores – disse ele, com a voz baixa e penetrante –, a verdade não é um fardo que o povo quer carregar. O povo prefere uma história que se ajuste aos seus medos e às suas esperanças. E é exatamente isso que devemos oferecer.
O terceiro vereador, aquele com o dom de medir as correntes do humor popular, interveio com uma expressão grave, marcada pela preocupação:
– O povo pode ser facilmente conduzido, mas também é imprevisível. E se alguém questionar? E se surgirem provas que desmintam a nossa narrativa?
Gruzi Gruzi levantou uma sobrancelha, imperturbável, como se já tivesse antecipado aquela objeção. O seu rosto, quase impassível, refletia uma confiança que não deixava margem para dúvidas.
– Provas? – disse ele, com um tom que desdenhava a própria ideia. – Quem as procurará? A narrativa será tão bem construída que ninguém terá a curiosidade de investigar. Além disso, vamos cercar-nos de aliados estratégicos: jornalistas, líderes comunitários... pessoas que amplificarão a nossa versão dos factos sem se atrever a questionar.
O presidente, ainda com a máscara da prudência, assentiu lentamente, mas o olhar que lançou a Gruzi Gruzi revelava uma hesitação, como se o peso da decisão fosse finalmente recair sobre seus ombros.
– E quanto aos antigos senhores da cidade? Alguns ainda podem ter influência suficiente para nos contrariar, ou pelo menos para lançar dúvidas sobre a nossa versão.
Gruzi Gruzi soltou um riso curto, frio, quase uma risada contida, mais um desafio à ideia de qualquer resistência.
– Influência? Senhor presidente, a influência deles é um ruído do passado. Estamos a construir o futuro, e quem controla o futuro, controla a memória. Quando terminarmos, as pessoas lembrar-se-ão deles apenas como os vilões desta história.
Os outros vereadores começaram a relaxar, os seus corpos lentamente abandonando a rigidez inicial. A tensão que dominava o ambiente foi sendo substituída por uma energia disfarçada de entusiasmo, como se, de repente, o jogo tivesse começado a tomar a forma de uma oportunidade real. O segundo vereador, mais pragmático, bateu com a mão na mesa, um gesto final que selava o consenso.
– Concordo – disse ele, a voz firme. – O poder não reside na verdade, mas na percepção que criamos. E se esta narrativa nos permitir transformar Bakanorte e garantir o nosso futuro, que assim seja.
O presidente, agora com um brilho calculado nos olhos, levantou a mão, pedindo silêncio. O eco dos murmúrios cessou imediatamente.
– Muito bem, senhores. Se estamos todos de acordo, avançaremos. Mas quero que esta operação seja conduzida com o máximo de discrição. Nenhuma palavra fora desta sala.
Gruzi Gruzi sorriu, uma expressão de satisfação discreta, que refletia não só a vitória do momento, mas também o domínio completo da situação. Para ele, aquilo não era apenas uma reunião; era a confirmação de que a sua visão estava prestes a tornar-se uma realidade imbatível. Enquanto os outros discutiam os detalhes logísticos, ele já traçava mentalmente os próximos passos, ciente de que o verdadeiro poder estava, como sempre, na manipulação da perceção pública e na capacidade de transformar mentiras em verdades inquestionáveis.
O ambiente na sala tornou-se mais denso, como se as palavras de Gruzi Gruzi tivessem lançado uma sombra sobre todos os presentes. O silêncio, agora quebrado apenas pelo suave farfalhar de papéis e pelo som dos dedos que tamborilavam inquietos sobre a mesa, refletia uma tensão que estava além da simples expectativa.
Gruzi Gruzi, aparentemente alheio ao impacto das suas palavras, continuava a analisar o mapa, como se ele próprio fosse um território a ser conquistado. Cada linha, cada zona destacada, representava um movimento calculado, um passo no seu plano de dominação sobre os destinos de Bakanorte. A sua visão parecia não conhecer limites. Ele sabia que, ao manipular o espaço físico da cidade, poderia moldar a própria identidade da comunidade, tornando-se, para todos, não só o mestre do jogo, mas o próprio criador da história.
O presidente, ciente de que Gruzi Gruzi era um homem de estratégia, mas também um homem de riscos, não pôde deixar de perguntar:
– E os nossos aliados? Quem irá sustentar esta visão? Porque, como bem sabes, Gruzi Gruzi, não podemos governar apenas com as nossas próprias mãos. Precisamos da força dos outros.
Gruzi Gruzi, sem hesitar, virou-se ligeiramente para o presidente, o olhar focado, como se estivesse a antecipar aquela pergunta.
– Senhor presidente, como já mencionei antes, os aliados são essenciais. Mas devemos ser claros sobre uma coisa: eles não são nossos amigos, são recursos. Vamos utilizar a sua lealdade, a sua influência, para criar uma rede de apoio que legitime a nossa narrativa. Jornalistas, empresários, líderes locais... todos eles têm um preço. E a nossa habilidade será em garantir que o preço deles seja a nossa vitória.
O presidente ouviu atentamente, uma leve contração na testa, como se ponderasse as implicações de tal aliança. Não era um homem de ingenuidades; sabia que alianças, por mais estratégicas que fossem, poderiam ser tanto um trunfo quanto uma faca de dois azes. Mas também sabia que, no jogo que estavam a jogar, arriscar era parte do processo.
Um dos vereadores, talvez o mais desconfiado, questionou com voz hesitante:
– E quanto ao povo? O que dizer das pessoas que vivem aqui, que dependem da nossa liderança? Não podemos simplesmente ignorá-las.
Gruzi Gruzi sorriu, quase com um toque de piedade, como se a pergunta fosse uma distração de algo maior.
– O povo, meu caro, é volúvel. Eles acreditam naquilo que lhes é apresentado com mais convicção. A nossa tarefa será fazê-los acreditar que estamos a agir em nome do bem coletivo, que cada decisão que tomamos é para o seu benefício. Se fizermos isso com destreza, não será necessário mais do que o calor de algumas palavras bem escolhidas para que eles se voltem a nós, como crianças à procura de uma cabeça.
Os outros vereadores, agora mais confiantes, murmuraram em concordância. O jogo estava a ser desenhado, e as peças estavam no tabuleiro. Gruzi Gruzi, com o controle total da reunião, voltou a apontar para o mapa.
– Estes terrenos, estas zonas que estão aqui à nossa frente – continuou ele com uma voz cada vez mais firme – representam o futuro. E esse futuro não será apenas nosso, mas também de todos que compreenderem que a mudança é inevitável. Não temos que convencer todos. Só precisamos de convencer os que têm poder para fazer a diferença. O resto seguirá.
Os presentes, já submersos nas possibilidades daquela visão, começaram a visualizar o que Gruzi Gruzi estava a oferecer: não apenas uma cidade remodelada, mas um novo ciclo de poder, onde as oportunidades estavam ao alcance de quem soubesse agarrá-las. O futuro estava em construção, e, mais uma vez, Gruzi Gruzi mostrava a sua mestria em transformar a realidade à sua imagem e semelhança.
O silêncio que se seguiu à fala de Gruzi Gruzi foi carregado de uma tensão palpável. As palavras que acabavam de sair da sua boca ressoaram como uma promessa e uma ameaça simultâneas, uma linha tênue entre a oportunidade e o risco.
O presidente, com o olhar fixo no mapa, parecia ponderar profundamente. A ideia de se colocar no centro de uma transformação, de ser não apenas um governante, mas o arquétipo de um novo começo, era tentadora. Contudo, sabia que a linha entre o sucesso e o fracasso, neste caso, poderia ser perigosamente fina.
– Você sugere que, ao tomarmos as rédeas da cidade, também tomemos para nós as riquezas que dela emanarão? – questionou o presidente, a voz grave, como se estivesse a sondar as verdadeiras intenções de Gruzi Gruzi.
Gruzi Gruzi não se intimidou. Pelo contrário, seu sorriso foi mais amplo, refletindo uma confiança inabalável.
– Exatamente, senhor presidente. Esta cidade, este território, são muito mais do que apenas uma posse física. Eles são símbolos. São as sementes de um império que podemos semear, cultivar e colher. Aqueles que se posicionarem corretamente, agora, no início deste processo, serão os mestres do jogo. A narrativa que estamos a criar, a história que vamos contar, fará de nós os verdadeiros donos do futuro.
O segundo vereador, que se mantinha atento e crítico, exalou uma risada seca, talvez mais por desconforto do que por ironia.
– E o povo? O que dizer do povo, Gruzi Gruzi? Eles não são tão facilmente moldados como você parece sugerir. Eles sabem quem são os verdadeiros responsáveis por suas dificuldades.
Gruzi Gruzi, imperturbável, fixou os olhos no vereador, os lábios esboçando um sorriso calculado.
– O povo não precisa saber a verdade. Eles só precisam de um culpado. E nós já lhes oferecemos isso, com a narrativa que vamos construir. As suas frustrações vão encontrar um alvo: o passado. As falhas dos antigos administradores, o abandono das zonas vitais, o caos no planeamento urbano. Eles não terão outra escolha senão se aliar à nossa visão. O presidente, absorvendo as palavras de Gruzi Gruzi, fez uma pausa, como se estivesse a medir os riscos e benefícios de um movimento que poderia mudar tudo.
– É um jogo perigoso, Gruzi Gruzi. As pessoas, como você disse, não são tolas. Se falharmos... não será apenas uma falha nossa. Será o fim de qualquer poder que possamos ter. A confiança do povo não é algo que possamos reconstruir facilmente, caso a perca.
Gruzi Gruzi inclinou-se ligeiramente para a frente, os olhos brilhando com uma intensidade que ninguém na sala poderia ignorar.
– Não podemos temer os riscos, senhor presidente. O poder nunca vem sem eles. Mas, quando se tem a narrativa certa, a história nas mãos, até os maiores riscos se tornam oportunidades. Eu não vejo este como um jogo de perda, mas como a chance de sermos eternos na memória de Bakanorte. Não seremos apenas os responsáveis pela transformação da cidade, mas também os arquitetos da história que ela irá contar sobre nós.
Os vereadores, mais uma vez, começaram a trocar olhares. O tom de confiança de Gruzi Gruzi estava a torná-los mais recetivos, mais dispostos a acreditar que a sua visão poderia ser não só viável, mas até inevitável. O presidente, por sua vez, parecia ter chegado à conclusão de que o risco, agora, era menos uma escolha do que uma necessidade.
– Muito bem. Se avançarmos com isso – disse o presidente, a voz agora firme – devemos garantir que todos os passos seguintes sejam dados com precisão. Não podemos permitir que nada escape ao nosso controlo.
Gruzi Gruzi sorriu, uma expressão que parecia já antecipar a vitória. Ele sabia que o jogo estava apenas a começar, mas que a sua estratégia, cuidadosamente arquitetada, tinha a força necessária para mudar o curso de Bakanorte – e talvez até do próprio destino de todos os envolvidos.
– Exatamente, senhor presidente. O futuro será nosso, e a cidade será apenas o palco onde a nossa grande história será contada.
Ao sair da sala, os vereadores dispersaram-se, cada um com o peso das palavras ainda reverberando em suas mentes. O ar estava carregado de uma tensão palpável, como se o destino da cidade já estivesse traçado e, agora, fosse apenas uma questão de tempo para que as sementes do futuro começassem a germinar.
Gruzi Gruzi, no entanto, caminhava com uma confiança serena, como se o poder já fosse seu. Ele sabia que a transformação de Bakanorte não seria apenas uma questão de redefinir espaços físicos, mas de controlar o próprio fluxo das memórias, das aspirações e dos medos que moldam os corações e as mentes do povo. O que ele propunha era mais do que um plano urbano – era uma reconstrução total da perceção coletiva.
O presidente, que havia mantido uma postura mais reservada, parecia agora mais decidido. Ele compreendia que, ao seguir o caminho que Gruzi Gruzi lhe propunha, poderia garantir a sua própria sobrevivência política. Mas, mais importante ainda, poderia se tornar parte de uma história maior – a história de um novo governo, uma nova era. Uma era que não seria definida pela verdade, mas pela narrativa que ele ajudasse a criar.
O terceiro vereador, com seu olhar penetrante, talvez soubesse que os limites do que estava a ser discutido já não eram mais claros. A moralidade, a ética e a verdade haviam sido dissolvidas em favor do pragmatismo e da manipulação. Mas o que ele havia dito – que transformar o presente é também reescrever o passado – ecoava como uma verdade imutável. A história, afinal, nunca pertenceu a quem a vive, mas a quem tem o poder de contá-la.
Naquela noite, as ressonâncias da reunião continuaram a ressoar pelas ruas de Bakanorte. Os cidadãos, alheios à conspiração que se desenrolava nos bastidores, começavam a perceber algo de diferente no ar – uma promessa de mudança, mas também uma sensação desconcertante de que talvez estivessem prestes a ser conduzidos, mais uma vez, por uma história que não escolheriam contar.
Gruzi Gruzi sabia que o jogo estava apenas a começar. Ele não precisava apenas de terras; ele precisava de íntimos e intelectos. E para isso, ele tinha a narrativa perfeita.
O ambiente na sala parecia ter-se distorcido, tornando-se denso e carregado de tensão. O presidente, com o seu olhar imperturbável, fixou-se em Gruzi Gruzi como se estivesse, na verdade, apenas confirmando o inevitável. As palavras do terceiro vereador, ecoando pela sala, não passavam de um sussurro perante a autoridade que o presidente exibia com sua resposta curta e implacável.
Gruzi Gruzi sabia que o jogo tinha mudado, mas isso não o perturbava. Na verdade, ele já havia calculado cada movimento e as reações que seguir-se-iam. Sua nomeação não era apenas uma questão de alavancar uma carreira política. Era a chave para o domínio de uma narrativa que ele pretendia arquitetar, um passo essencial na sua estratégia para consolidar o poder de forma definitiva.
O segundo vereador, cujos olhos inquietos estavam agora fixos no mapa do município que ainda repousava sobre a mesa, compreendia a implicação da nomeação de Gruzi Gruzi. Ele sentia, no fundo, que a manobra não era apenas política, mas estratégica, e que os próximos meses, talvez até anos, iriam exigir uma nova abordagem, uma nova narrativa. O poder estava a ser realinhado diante de seus olhos, e, por mais que se recusasse a aceitar, já sentia a rotação da roda da fortuna a afastá-lo do centro.
Os outros vereadores, ainda absorvendo o golpe, pareciam temer o futuro. Não por medo de Gruzi Gruzi, mas por perceberem que estavam a ser deixados à margem, como peças descartáveis no grande tabuleiro que ele estava a construir. Cada um deles, em sua posição, avaliava as suas opções, calculando a melhor maneira de reagir sem perder a estabilidade conquistada.
Mas o maior impacto parecia recair sobre o próprio Gruzi Gruzi. Para ele, aquele momento de tensão era apenas o culminar de anos de preparação. Sua ascensão não dependia apenas de sua habilidade de manipular os outros; dependia, acima de tudo, da sua capacidade de controlar a relato de que todos estavam a tornar-se parte. Ele não era apenas um nome no papel de uma administração. Ele era o arquétipo de uma história em formação, o mestre da versão oficial dos acontecimentos.
Sem emitir qualquer palavra, Gruzi Gruzi sabia que o próximo passo seria fundamental. Ele não se limitaria a cumprir as suas funções como responsável pelas obras municipais. Ele iria redesenhar as próprias fundações de Bakanorte. E, quando o fizer, a cidade não seria apenas fisicamente transformada, mas também sujeita à força da narrativa que ele impusesse.
O silêncio na sala não era mais de dúvida, mas de uma aceitação tácita do poder que estava a ser consolidado. Gruzi Gruzi, com um sorriso impercetível, sabia que as peças já estavam no lugar. O seu jogo começava agora, e os outros não podiam nem perceber completamente as implicações de suas escolhas.
Gruzi Gruzi seguiu pelo corredor, o som dos seus passos assonando nas paredes vazias, como se o próprio edifício estivesse a reconhecer o poder que ele agora detinha. Em sua mente, o plano estava a tomar forma, mais claro do que nunca. A cidade de Bakanorte, com todas as suas divisões e limitações, seria transformada à sua imagem e semelhança. Mas, mais do que isso, ele estava prestes a reescrever a própria história da cidade, a construir uma versão que fosse tão convincente que ninguém ousaria questioná-la.
O mapa ainda nas suas mãos parecia ser mais do que um simples documento. Cada linha, cada fronteira, era uma oportunidade, uma possibilidade de manipulação. Sabia que, para consolidar o seu domínio, precisaria de mais do que uma simples requalificação das terras. O que estava a desenhar não era apenas um plano urbano; era um novo tecido social, uma narrativa que envolveria a população e os aliados estratégicos que ele já começava a atrair.
A manipulação das perceções era a chave. Ele sabia que o povo de Bakanorte não se importava com a verdade, mas com aquilo que lhes fosse conveniente acreditar. As velhas histórias, os velhos erros dos administradores passados, seriam tecidos como um manto, uma capa para esconder o que realmente estava em jogo: o poder que ele estava a construir, as estruturas de controle que estavam a ser erigidas nos bastidores.
Ao atravessar os corredores, Gruzi Gruzi não se sentia apressado. O tempo, para ele, era um aliado. Sabia que a paciência e a construção gradual de sua narrativa lhe dariam uma vantagem. Era preciso dar tempo para que as sementes da desconfiança germinassem, para que o povo se tornasse cada vez mais dependente da história que ele estava a criar.
O segundo vereador, que ainda estava a digerir a nomeação e o impacto dela, talvez não entendesse completamente a profundidade do movimento de Gruzi Gruzi. Para ele, a política era um jogo de poder aberto, com confrontos diretos e negociações. Mas Gruzi Gruzi sabia que o verdadeiro poder não se constrói através da força, mas pela manipulação das perceções e da memória coletiva. O povo não se lembraria dos velhos erros, mas dos que estavam por vir – e ele garantiria que fossem os seus próprios erros, os seus próprios feitos, que marcassem a história.
Quando Gruzi Gruzi chegou ao seu escritório, o mapa foi colocado com cuidado sobre a mesa. Ele sentou-se, os dedos tocando as linhas e marcas como se estivesse a sentir o pulso da cidade. O futuro de Bakanorte estava, de facto, nas suas mãos. E ele estava prestes a mostrar ao mundo que, quando se controla a narrativa, o poder é mais do que uma posição – é uma criação, um ato de construção constante.
Agora, mais do que nunca, Gruzi Gruzi estava preparado para jogar o jogo da história. E ele sabia que, ao final, a cidade se lembraria apenas da versão que ele queria contar.
Gruzi Gruzi se levantou da cadeira, os olhos ainda fixos no espaço onde o mapa estivera, como se as linhas e divisões ainda se movessem em sua mente. Ele sabia que cada passo agora teria repercussões incalculáveis. O jogo estava em andamento, mas o mais perigoso era não apenas a jogada de hoje, mas as movimentações furtivas que ele planejava para o futuro.
Cada aliado, cada antagonista, cada gesto calculado, fazia parte de uma estratégia maior. E como num tabuleiro de xadrez, sabia que o tempo seria seu maior aliado. O presidente, com seu poder formal, era uma peça importante, mas não definitiva. Gruzi Gruzi compreendia que a verdadeira chave era o controle das narrativas, das memórias. Os votos e os apoios viriam e iriam, mas a história era eterna. O passado que ele forjasse, as versões dos eventos que ele propagasse, isso sim, garantiria que seu nome fosse lembrado como o arquétipo do poder.
Com o mapa agora guardado, Gruzi Gruzi percorreu o escritório, com passos lentos e pensativos. As paredes, repletas de documentos e mais mapas, pareciam refletir a complexidade do que ele estava a arquitetar. Mas, no fundo, ele sabia que o verdadeiro jogo acontecia além daquelas paredes. Era nas ruas, nas casas, nas conversas sussurradas e nas disputas silenciosas onde o destino de Bakanorte seria decidido. E, a cada dia, a narrativa que ele construiria tornaria o nome de Gruzi Gruzi uma verdade inquestionável.
O ambiente estava mais quieto agora, a cidade lá fora parecendo respirar com a mesma calma estratégica que ele exalava. O futuro de Bakanorte não estava apenas a ser moldado pela construção de edifícios ou pela requalificação de terrenos. Estava a ser esculpido nas palavras que ele dizia, nas promessas feitas, e, mais crucialmente, nas omissões e nas verdades que ele escolheria esconder.
"Os vencedores escrevem a história", pensou ele, com a certeza de quem já havia decidido seu próprio futuro. Não havia espaço para fragilidades agora, apenas para uma linha implacável rumo à conquista do poder absoluto. Gruzi Gruzi sabia que, em breve, todos os olhos estariam voltados para ele, e ele garantiria que o palco estava pronto para o grande espetáculo que viria.
Sabia que, por trás da cortina, ele era o único que controlava a música. E ninguém saberia dançar sem a sua permissão. O homem que tinha o maior cargo era só uma respiração de ocasião.
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