Grandes livros fazem grandes leitores. E sem grandes leitores, um país não avança.
Dezembro chegava todo pomposo, vestido de gala de feira, cartola torta e gravata mal passada, a soprar "hohohos" por tudo quanto é canto. Kòkô, o Leitor da Praça de Tarrafal, homem sem paciência para festividades baratas e discursos de plástico, encafuava-se num banco qualquer do norte da ilha de Santiago, lá em Bakanorte, onde até as ondas têm preguiça de bater na areia. O Menguel, que tinha sempre uma resposta pronta, ao vê-lo com aquela cara de poucos amigos, largava logo:
— Esse homem stá xatiadu sima Salinger sem um grogu fedi y fudidu de kasal Ká ó la kanbadu.
Kòkô, com a calma de um velho livro a apanhar pó, respondia:
— Sou um badiu velho de Tarrafal, conheço as manhas de homens que leem e mulheres que se tornam chiques a lerem e outras a promoveram banal literário em cada natal. E tu, Menguel?
— Eu? Uma ressaca literária ambulante, neste momento estou aqui a convite do Mário para Tarrafal é uma festa, conheci vários das vossas escritoras. O ano nem acabou e já estou a empurrar palavras com a barriga.
Quem passava por ali nem se incomodava. Em Bakanorte, o ritmo era outro: devagar, cadenciado, mas com as suas "iniciativas culturais" a brotar por tudo quanto é lado, como ervas daninhas. O problema? Era só espetáculo. Grandes eventos, holofotes apontados para tudo, menos para os livros, e, claro, os famosos panfletos vazios. Distribuíam-nos com uma solenidade digna de prémio Nobel — só faltava o presidente a entregar.
E, como sempre, lá vinha ele: o homem sem rosto. Aparecia sorridente, com aquele ar de vendedor de marcadores de livro em feira de artesanato, e cuspia palavras decoradas, cheias de eco:
— Kòkô! Por aqui outra vez? Já me lembro de ti. És aquele das "grandes ideias". Mas diz-me: a tua criação tem quantos anos, mesmo? Contínua no papel ou já saltou para a realidade?
Kòkô nem piscava. Limitava-se a olhar o homem com aquele ar de "já te vi numa página perdida de Kafka". Soltou uma risada daquelas que só os lúcidos sabem dar e olhou ao redor: a sala estava cheia de "intelectuais", ou melhor, de gente armada em escritores, com cachecóis no pescoço e palavras difíceis na ponta da língua. Lá estavam:
Dona Clotilde, a poeta oficial da vila, que rimava "coração" com "solidão" sempre que pegava numa caneta. Jurava que Camões era seu padrinho literário.
Zeca do Travesseiro, um leitor destrambelhado que, de tanto tentar ler Ulisses, dormiu na página 2 e acordou duas semanas depois, convencido de que tinha absorvido tudo por osmose.
O Sr. Ambrósio, o "intelectual". Trazia sempre um livro debaixo do braço — nunca lido, claro — só para citar "Fernando Pessoa" em jantares e ‘vernissages’. Nem precisava saber a obra; um verso ou outro bastava.
Kòkô, vendo o circo montado, murmurava baixinho:
— Incentivar a leitura? E chamam incentivo a panfletos sem alma, palavras sem vida, frases vazias! Como se meia dúzia de folhetos pudesse substituir um parágrafo de Os Miseráveis.
Ali ninguém falava de Cervantes, o coitado que pôs o pobre Quixote a lutar contra moinhos, nem de Machado de Assis, que nos deixou um Brasil espatifado no espelho. Pessoa? Era só frase pronta, impressa a dourado em convites que ninguém lia. Camões, então, afogava-se todos os dias numa maré de ignorância e panfletos.
Mas Kòkô, como bom "mattxikadu brabu" com dois t, não deixou barato. Levantou-se, ajeitou a boina imaginária e proclamou para os poucos que ainda ouviam:
— Um dia, vou dar-vos um koxi de boka aberta que nem o José Luís dava, quando namorava pelo fogo das palavras com o homem do sindicato dos leitores. Mas cuidado: sou velho demais para panfletos e jovem demais para desistir.
E, como num passe de mágica, desapareceu — tal qual a fumaça de um charuto velho esquecido na janela.
Cá fora, os holofotes continuavam a piscar, mais brilhantes que qualquer ideia. O espetáculo seguia: as luzes, as vozes a gritar "Leitura!" e os panfletos a voar, como se o vento fosse lê-los por piedade. Enquanto isso, os livros clássicos continuavam a dormir nas prateleiras, a sonhar com dias melhores.
E no silêncio que o vento deixou, só se ouvia o eco de Kòkô:
— Grandes livros fazem grandes leitores. E sem grandes leitores, um país não avança. Nem com panfletos, nem com discursos.
Do fundo da vila, o Zeca do Travesseiro resmungou, acordando subitamente:
— Raios partam! Alguém viu onde parei no Ulisses?
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