A fome estava na barriga e em cada canto do pensamento do homem cabo-verdiano.
Nesta manhã, mais uma vez, o rapaz do pão chegou. Essa fórmula de acordar as pessoas às seis da manhã já se tornou rotina.
— Odja poooonnn!
Cristo deu à caravana pães e peixes. As nossas gentes, marcadas pela fome de 47, certamente pensaram nesse milagre: os pães de Cristo ou qualquer coisa que matasse a fome. Seja o que for, que desse algo, nem que fosse uma pedra, para espantar o vazio na barriga. Agora, nem fome temos, talvez porque o empreendedorismo formigueiro não deixa.
Na minha rua, já lá vão quatro anos que converso com um homem de 90 anos. Nicanor Parra dizia, "Gostaria de morrer de poesia," e Neruda respondia, "Quero morrer de silêncio do amor." Conversas de poetas honrados e distintos. O meu amigo, já muito velho, com o resmungo ciente de que a idade lhe trouxe o apagamento da juventude silenciosa, diz, "Quero morrer de distâncias. Sei como as pessoas morrem de fome! Nem pães, nem boca aberta. Era a gana que matava."
Nesses meus 90 anos bem esticados, daria cordas suficientes para amarrar o tempo. Um tempo que agora me custa ter. Sinto a presença dos meus pais, diariamente acariciando-me a cabeça e os meus inexistentes cabelos pretos, agora brancos. Nesta velha cabeça que ganhou juízo tardiamente, conheci o rabo do mundo. Nesse lugar, os homens depositam restos bons de batons coloridos da vida. Lá, a boca fala só o essencial; o resto é silêncio. O mundo, em certo momento, deveria negar ser o seu próprio caos.
Num canto da casa, vi o meu pai distanciar-se entre o seu corpo e a sua alma. Estiquei as mãos com todas as forças. Hoje acordei com 90 anos, lembrando todos os dias dele, esfomeado. Nem sede, nem fome se fixaram nos terrenos do desespero de um homem que saiu de Tarrafal com destino à cidade da Praia. Paramos em São Domingos, e por lá pernoitamos, alimentados de milho velho, por sugestão do governador estrangeiro. Aqui, a seca é natural, mas as medidas eram estrangeiras.
A fome estava na barriga e em cada canto do pensamento do homem cabo-verdiano. Tenho 90 anos e um crucifixo mudo de Cristo no peito que recebi da minha mãe antes de escolher o buraco na berma da estrada, para ali deitar, o tal sono com fome, ainda em 47. Tem um detalhe na morte dela. É que ninguém lhe desenhou os seus mapas de sofrimento. Às vezes, é necessário acordá-los para agradecê-los por um passado duro que aguenta esta memória presente.
Há dias ouvi falar das baleias cantoras, que serviram de base para o álbum Pangéia, nome antigo, pré-histórico, que nos remete à origem do mundo. A morte também criou o mundo, para poder alimentar-se das suas criações viventes e de coisas bem humanas na Terra.
O que é ser humano neste tempo? É cada vez mais necessário que a máquina entre no processo. Andam loucos a sair do confinamento, e cada conhecimento que o homem traz à luz do dia faz com que ele próprio entre em confinamento. Isso remete-me ao livro de Valter Hugo Mãe, *"A Máquina de Fazer Espanhóis."* Antigamente, a fome era uma máquina que come gente, mata gente. Eram vizinhos habituais nas três refeições do dia.
Lembro-me de J.D. Salinger. Não dava autógrafos, um antissocial, rebelde. Essa é a sensação que ficou ao ler *"O Apanhador no Campo de Centeio."* É um livro que toca e lembra também alguma juventude da cidade da Praia, no início do fenómeno "tug." Imaginem esses "tugs" em 1947 a passar fome. Nem caso, meu filho, nem caso.
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