Zé poderia prever o futuro de qualquer um da vila.
Desmentindo o Papa
Reza a lenda que, quando o Papa João Paulo II chegou a Cabo Verde, em Colhe Bicho, havia um rapaz que já sabia de cor tudo o que o Santo Padre diria. E esse rapaz não era qualquer um; ele tinha um animal no nome — Zé do Burro. Para os mais desavisados, isso podia parecer simples coincidência, mas para os habitantes de Colhe Bicho, Zé do Burro era uma espécie de oráculo. Não só sabia o que o Papa diria, mas também o que ele comeria, como se tivesse lido o cardápio do Vaticano antes de todos. Dizia-se até que, com o poder da sua intuição, Zé poderia prever o futuro de qualquer um da vila. Se alguém podia adivinhar o que o Papa ia fazer, era ele. Se alguém podia prever o que Aristides Pereira ia jantar, era ele. Se alguém podia até dizer se o burro de Zé ia ou não comer as couves de Dona Inês, esse alguém era Zé do Burro.
Mas como toda boa lenda, a história de Zé não era lá muito clara. Ele afirmava com convicção que as coisas que dizia, dias antes da chegada do Papa, eram verdades, ou, na pior das hipóteses, mentiras. E em Colhe Bicho, entre verdades e mentiras, o que importa mesmo é o jeito que a história é contada. E Zé do Burro tinha o dom de contar boas histórias. Ele passava de bar em bar, de botequim em botequim, espalhando a boa nova de que todos os moradores da rua de Nha Ka Ta Poi até Inês estavam convidados a escrever os seus problemas e entregá-los ao Papa. “Ele vai abençoar este povo”, dizia Zé, “povo que vive de resistência, sorte e de noites que engolem histórias.” E ninguém poderia discordar dele, especialmente porque, em Colhe Bicho, todo mundo sabia que a noite engolia as histórias de maneira tão voraz que os próprios anciãos, no meio de um bom conto, caíam no sono sem nem perceber.
E foi nesse ambiente de histórias mal contadas e sonhos doces, alimentados pelas lendas do pão quente que nascia de madrugada, que o velho Manuel de Nha Ka Ta Poi, o mais falador de todos, espalhou a notícia: o Papa viria. Não era novidade que ele sabia o que o Papa iria fazer antes de ele fazer. Sabia, por exemplo, que Aristides Pereira ia comer peixe frito no dia seguinte. E, se Manuel dissesse isso, podiam apostar: Aristides comeria peixe frito. E o peixe, como um bom prato de Colhe Bicho, tinha o poder de manter tudo no lugar. Então, quando Manuel anunciou que o Papa João Paulo II viria a Colhe Bicho, não restou mais ninguém que não tivesse ficado agitado. Afinal, quem não gostava de um bom evento para esquecer os problemas? E, para completar, Zé do Burro ainda tinha uma lista de reclamações que ele jurava que o Papa resolveria, como se ele fosse o presidente do mundo e tivesse o poder de mudar até o destino do burro que insistia em comer as couves de Dona Inês.
No grande dia, Zé do Burro estava no centro da rua, se preparando para sua participação especial. E, como sempre, a praça estava cheia de gente, mas um homem se destacava entre todos: Abraão Borges. Abraão era o tipo de pessoa que nunca se cansava de contar histórias sobre mares e pescas. Ele estava lá para dar o seu testemunho sobre a vida difícil de Colhe Bicho, ou para talvez arranjar um jeito de simplificar o sofrimento de todos, ensinando como pescar e deixar de reclamar. No entanto, a vida de Abraão, como o próprio mar, era cheia de ondas e reviravoltas, e ele estava prestes a testemunhar uma dessas viradas.
O Papa, com a paciência de um santo e a cara de quem acabara de ler o inventário de todos os problemas do mundo, finalmente olhou para a multidão. Após um longo silêncio, ele pegou a lista de queixas e, com um suspiro, perguntou:
— Quem é FERRO? Palesi que essa gente vevi multu petroli.
Aquela pergunta, mais confusa que uma receita de feijão-de-coco sem feijão, fez o mundo parar por um instante. Ninguém sabia o que significava FERRO. Ninguém sabia o que o Papa queria dizer com "multu petroli". E, no instante seguinte, Aristides Pereira, o homem da frente, não hesitou. Com a coragem de quem nunca teve medo de enfrentar a verdade, gritou:
— É mentira, é mentira!
Naquele momento, o mundo de Colhe Bicho virou de cabeça para baixo. Aristides, ao desafiar o Papa, se tornou o herói local. Quem era ele para desmentir o Santo Padre? A pergunta que ninguém sabia responder, mas todos passavam a perguntar. O que Aristides desmentiu? A tal palavra FERRO? A quantidade de peixe que Aristides havia prometido? Ou foi o próprio Papa que estava mentindo? O certo é que Aristides se tornou, de repente, o maior defensor da verdade — ou da mentira, como preferissem.
A partir desse momento, Colhe Bicho se transformou. As palavras começaram a voar de uma maneira nova, as histórias se multiplicaram como pães de madrugada, e a palavra "FERRO" se tornou a mais pronunciada de todas. Ninguém sabia mais o que significava, mas todos a usavam. FERRO virou sinônimo de tudo e de nada, de tudo o que se sabia e de tudo o que não se sabia. Como uma boa piada de bar, ninguém mais conseguia se lembrar do que estava falando, mas todos concordavam que tinha alguma verdade no meio.
No fim, o Papa João Paulo II, ao abençoar Colhe Bicho, não só abençoou um povo simples e orgulhoso das suas tradições. Ele também plantou uma lenda, onde a coragem de desmentir uma autoridade se tornou o maior símbolo da vida cativante e, ao mesmo tempo, caótica, daquele povo. E assim, em Colhe Bicho, a verdade passou a ser um bicho de mil cabeças, e a mentira, bem, a mentira talvez fosse a maior das verdades. E o Papa, ao olhar para tudo aquilo, talvez tenha entendido: em Colhe Bicho, o que importa não é o que se diz, mas como se diz, e, sobretudo, quem tem coragem de desafiar até a própria Igreja em nome de uma boa história.
E, se por acaso, o Papa João Paulo II tivesse que voltar à Colhe Bicho, talvez ele tivesse aprendido a perguntar apenas uma coisa: “Quem é FERRO agora?”.
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