Famílias que outrora viam nos filhos o seu maior tesouro enfrentam hoje novos desafios.
Por Mário Loff
texto que surgiu depois de uma conversa com uma mulher que está passado por esta situação.
Minina dja txiga tenpu bu torna pari!
Raça ki Bali, a frase muito ouvida por esses bandas do mundo cabo-verdiano. Há no íntimo do ser cabo-verdiano há uma crença que se cruza com a vaidade dos trilhos e os ventos que cortam as serras: a convicção de que, após o primeiro filho, o casal deve logo preparar o espaço da família para o segundo. Um intervalo breve, de um ou dois anos, antes que os primeiros fios do cabelo do primogénito toquem o chão. Este legado, trazido de África pelos escravos, foi recriado no ventre das montanhas de Santiago, em noites de fadura e dias de trabalho incomplacente sob o sol ardente. É no caminhar resiliente do badiu que este costume se torna lei. Mas falo do badiu que constrói com as mãos calejadas e o espírito de ferro — não do vadio que o colonizador tentou impor. Esse, desprezamos com o vigor de quem nunca se curva ao vento.
"No meio do caminho havia uma pedra..." escreveu Drummond, e o cabo-verdiano, ao tropeçar nas pedras do seu chão, fez delas muros para proteger os seus, ou degraus para alcançar algo maior.
Estes homens e mulheres, defensores de uma poupança de subsistência, sustentavam as suas famílias com o suor do rosto e a força do corpo. Os homens arrancavam o pão da terra dura, enquanto as mulheres moldavam o barro, transportavam água e criavam mundos dentro das suas casas. "As mãos dizem o que o coração não ousa," disse Neruda, e aqui essas mãos não só falavam como construíam. Balaios de carapato e panelas de barro eram mais do que utensílios — eram o testemunho de que o engenho pode transformar a escassez em resistência. E, num mundo onde o trabalho nunca bastava, ter filhos era riqueza tangível, promessa de continuidade, como se cada criança fosse uma pedra adicional no alicerce de uma casa eterna.
Mas hoje, a essência de ser badiu ou badia parece diluir-se. Não se define por trajar lenços ou luto de dois anos em sukuru fitxadu, mas por uma postura de resistência ao estranho e conservar o que se lutou para conseguir na ardedura da vida que, na pressa da modernidade, se perdeu. As mulheres de hoje — modernas, determinadas e ousadas — confrontam-se com velhas pressões, como a ideia de que o primogénito precisa de um companheiro imediato. Para muitas, essa expectativa é um peso desnecessário, pois a maternidade já não é vista apenas como um destino, mas como uma escolha.
"Eu sou a terra, eu sou o chão," escreveu Jorge Barbosa, e é esta ligação visceral à terra que moldou o papel sagrado das mulheres nas antigas famílias. Elas eram as fontes da vida, símbolos de continuidade e fiadoras do futuro. A sua fertilidade era exaltada como uma bênção divina, consolidando alianças e perpetuando linhagens. As vozes repercutiam-se: "Gentes Loff, raça fadjadu, Gentis di sangui fadjadu!" ou "Nha família é ki bali!" — palavras que exaltavam o sangue como um tesouro e património, mas que, ao mesmo tempo, excluíam quem não partilhava do mesmo "ouro líquido".
O sangue, esse fluido vital, era visto como algo sagrado, mas também vulnerável. Um elemento estranho que é introduzido na família, sem o aval dos anciãos, era considerado uma afronta, uma violação. Aqui reside a eterna tensão entre tradição e modernidade, entre o orgulho de manter a continuidade e os perigos de romper com o passado. "Raíces y alas," escreveu Juan Ramón Jiménez, "mas que as raízes sejam profundas e as asas fortes." Hoje, a sociedade cabo-verdiana mudou. As escolhas de parceiros são feitas com critérios que refletem novas prioridades. Professores evitam relacionar-se com colegas da mesma profissão para escapar à repetição dos mesmos desafios e afrontas do final do mês. Gerentes procuram gerentes para o desejado nó, não por acaso, mas pela lógica do rendimento conjunto no final do mês e na possibilidade de o aperto não ser afronta diante da Iletra e ads no final do mês, ou rendas de casa. Afinal, "amor não paga conta de luz, mas movimenta dinheiro", brinca-se nos encontros de café. Contudo, a tecnologia, que encurtou distâncias, trouxe também dilemas que antes não existiam.
Famílias que outrora viam nos filhos o seu maior tesouro enfrentam hoje novos desafios. A dependência das drogas, alguém já dizia que o sangue mudou de sentido, agora é repositório moderno do químico e fumo, lugar para extirpar o Deus e sagrado e com elas sai os valores da família, por isso, se pensa que os amores tóxicos talvez seja reflexo de uma desconexão com os valores ancestrais. E, no entanto, como disse o etíope Tsegaye Gabre-Medhin, "A tradição é a mãe, e a modernidade, a filha inquieta."
Que nunca percamos o orgulho de criar, cuidar e acolher. Que a família, como a terra, seja algo que nos consuma, mas não por imposição, e sim por amor. Porque, como escreveu Eugénio Tavares, "Quem canta o coração, semeia na alma do povo." No final, o sangue que corre nas nossas veias não é apenas herança; é arte, pedaços de um património conjunto e coragem.
E se, por vezes, tropeçarmos nas pedras do caminho, lembremo-nos: é da pedra que nasce o fogo. E, entre risos e lágrimas, como diria o filósofo da esquina em Achada Mato, "Na vida, ou a gente planta árvores ou arranja sombra na dos outros. Mas sempre, sempre, há que cantar enquanto espera."
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