Santo Amaro e o Preço da Promessa Escuto, ainda repercute em mim as palavras ardentes de Ibanhez, o poeta peruano, que nos alertava sobre o ...
Santo Amaro e o Preço da Promessa
Escuto, ainda repercute em mim as palavras ardentes de Ibanhez, o poeta peruano, que nos alertava sobre o erro de “matar a vida dos arames”, esses fios invisíveis que entrelaçam o destino dos nossos lares e os nossos corações. São fios que ligam o passado ao presente, que unem as gerações, que tecem a memória de um povo, como mãos sábias que costuram o tecido da vida. E, se cortados, esses fios rasgam as costuras da alma, dilaceram legados de dor e amor, que muitas vezes sequer percebemos. É com essa urgência de preservação que nos aproximamos das festividades de Santo Amaro, onde o sagrado e o profano se entrelaçam num laço perene, aguardando cada promessa e cada retorno. Como nos lembra Victor Hugo: "A poesia é o profano tocando o sagrado, o céu sendo cantado pelos lábios da terra."
Faltam menos de treze dias, menos de treze batidas de um coração que se recusa a se curvar, para que a cidade, antes silenciosa, se transfigure. E, nesta época, é quase impossível encontrar um espaço para descansar num fim de semana comprimido. A cidade explode em sons, exala preces, respira histórias. O Tarrafal se levanta como uma velha alcatifa, onde, nos cantos escuros, repousam as lembranças de muitos. "Pega-Burrinho", o nome da capelania que acolhe as celebrações, ressoa como uma promessa simples, mas profunda, de um passado que nunca se perde, de um futuro que se renova a cada festa. E não, não é apenas uma festa religiosa. É a voz dos antigos, a narrativa coletiva de um povo que se refaz, que chora e ri simultaneamente, que cumpre e quebra promessas, que encara o divino e se espanta com sua própria humanidade.
Em cada olhar, em cada sorriso, algo se revela, algo que pulsa através do tempo, que toca o mais íntimo da carne. Uma mulher, vinda do Tarrafal, contou sobre a severidade com que se paga uma promessa quebrada a Santo Amaro. E a história que segue é de um homem, marcado pela dor do exílio, que, após trinta anos buscando no estrangeiro o que havia perdido em sua terra, finalmente obteve o passaporte para a liberdade. Ele prometeu voltar, trazer consigo o tempo perdido, mas o destino, implacável, o alcançou no porto, na iminência do regresso. Ele encontrou o leão fugido de sua jaula. E não foi apenas uma morte física; foi a morte das promessas quebradas, do elo entre o humano e o divino que exige mais que palavras: exige sacrifício, exige memória.
O Tarrafal, vibrante de juventude nas festividades, ainda se encontra entre as ruínas de um campo de concentração e a construção de um futuro incerto. Com 16 mil habitantes, a cidade vive uma transição contínua entre o ontem e o amanhã, entre a memória e os desejos. Aqui, há mais mulheres do que homens, mais juventude do que nas gerações anteriores, mas um futuro ameaçado pela diáspora. Seus filhos partem, levando consigo as raízes que deveriam alimentar a terra. Os velhos, com suas sabedorias, se vão deixando um vazio irreparável.
E, no meio disso tudo, as festividades chegam como um renascimento. Imigrantes, filhos que retornam, turistas curiosos, todos se fundem numa celebração onde o sagrado e o profano se tocam, onde a devoção se mistura à festa. Mas, ao mesmo tempo, há um vazio, um grito abafado pela falta de algo mais, de um movimento que preserve a memória e transforme o Tarrafal em um centro cultural vivo, que não se perca nas efemeridades religiosas. O Tarrafal tem uma história pulsante, marcada pela dor, pela resistência, pela luta, e não pode ser reduzido a um campo de concentração ou uma memória distante. Sua história é um grito que exige ser ouvido, transformado em ação.
E assim, entre o sagrado e o profano, entre fé e tradição, Santo Amaro nos desafia. Ele nos convoca a refletir sobre o que somos, o que fomos e o que podemos ser. Como disse Ngũgĩ wa Thiong’o, "O folclore é a forma mais antiga de literatura, e em suas histórias encontramos a alma de um povo". O Tarrafal é isso: uma alma que se refaz, uma terra onde a memória e os sonhos não pertencem a uma época, mas a todas as épocas.
E o leão, esse monstro simbólico, não é apenas o reflexo de uma tragédia isolada. Ele é a personificação das promessas não cumpridas, das escolhas que fizemos e das que deixamos escapar. Ele é a força que nos empurra a lembrar que, em cada promessa feita, há uma dívida que não pode ser esquecida, um laço que não pode ser rompido.
Portanto, que ao nos aproximarmos das festividades de Santo Amaro, possamos entender que cada promessa não cumprida é uma dívida com a alma, com a história, com a terra. Porque essas celebrações não são apenas rituais. Elas são as pontes entre o humano e o divino, entre o ontem e o amanhã, entre o que fomos e o que ainda podemos ser. No centro do Tarrafal, em cada oração, em cada canto, reside a semente de um amanhã mais profundo, mais pleno, mais justo. Quem pegar o burrinho saberá que a promessa vai além do que se vê, além do que se toca. Ela pulsa em cada esquina, em cada rosto, em cada história que se renova.
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