Mas... um padre pode fazer isso?
O Sacerdote e a Dama de Salto Alto - Por Mário Loff
Se alguém me dissesse, sem que eu próprio tivesse testemunhado, que aquele momento realmente aconteceu, juro que recusaria acreditar. Mas, como vi com os meus próprios olhos, narrarei os fatos tal como ocorreram. Tudo começou na Rua do Barbeiro, um cenário de contrastes onde o tempo parecia ter deixado a sua marca de maneira implacável.
Na parte esquerda da passadeira, o chão era um mosaico de opostos: basaltos habilmente talhados, que ainda ostentavam a perfeição de mãos cuidadosas, misturavam-se a pedras em estado bruto, irregulares e já gastas pelo passar dos anos e o incessante pisar das gentes. Era como se a vida daquela rua estivesse cravada ali, no diálogo entre a rudeza e o engenho humano.
Do lado direito, outro panorama de intermitências: trechos cimentados com argamassas de tonalidade desbotada eram interrompidos por blocos de basalto, onde a irregularidade não se mostrava menos expressiva. As partes cimentadas revelavam fissuras que se expandiram como veias, denunciando o esforço constante de resistir à humidade e ao peso do tempo. A paisagem era emoldurada pelas acácias americanas que ladeavam a passadeira, dispostas em filas rigorosamente paralelas, como soldados fatigados após uma longa batalha. Durante o inverno, elas costumavam exibir folhas avermelhadas, um espetáculo que trazia um quê de vida e movimento àquele lugar. Contudo, naquele instante, todas as acácias estavam despidas, entregues à nudez austera da estação. Os ramos secos erguiam-se com as mãos enrugadas, implorando aos céus por misericórdia.
A atmosfera era soturna, como se a rua carregasse em si não apenas o desgaste físico, mas também um peso invisível, quase palpável, de crónicas não ditas, de vidas gastas por rotinas implacáveis. O ar,
embora imóvel, parecia saturado de melancolia. Era um daqueles momentos em que a decadência do ambiente parecia espelhar o desassossego humano, cada detalhe retumbando o irremediável envelhecimento de tudo que vive.
E foi ali, nesse cenário de detalhes brutais e inegáveis, que algo inesperado aconteceu. Na última casa da rua, que dava acesso à via que passava em frente à igreja, erguia-se a barbearia. Um edifício modesto, mas notável, especialmente naquela tarde em que a sorte parecia ter virado as costas ao barbeiro. Entre os ruídos abafados de conversas e os sons rotineiros da rua, um problema inesperado o atormentava: a máquina mais antiga, a que ele sempre confiara, decidira falhar. Era um objeto que jamais tinha dado qualquer sinal de desgaste, mas agora estava morta, inerte, como um relógio parado que teima em desafiar o tempo.
Do lado de fora, a visão era peculiar. No fio de luz elétrica que conectava a barbearia às casas vizinhas, uma fileira de passarinhas pendurou-se de maneira quase disciplinada, uma ao lado da outra, formando uma linha que parecia infinita. Mais de dez metros de pequenos corpos emplumados, balançando levemente ao ritmo de uma brisa que nem sempre se fazia sentir. Eram como testemunhas silentes daquele caos contido, observando do alto a melancolia das vidas que se desenrolaram abaixo.
Na oficina ao lado, um homem encharcado de óleo queimado batalhava contra um fogão a petróleo que modestamente se recusava a acender. Era uma guerra desigual, em que ele insistia em encher o recipiente de combustível, apenas para vê-lo vazar sem que nenhuma chama surgisse. A cada tentativa frustrada, o rosto do mecânico parecia escurecer ainda mais, não apenas pelo óleo, mas pela frustração que se acumulava em gestos desesperados. A cena era um quebra-cabeça absurdo, onde o esforço humano parecia desabar diante da teimosia de objetos inanimados.
Para completar o quadro, o sino da igreja, que deveria anunciar o tempo com pontualidade, manteve-se em um silêncio perturbador. Não tocou às quatro, nem às quatro e meia. Era como se o tempo tivesse se recusado a seguir o curso habitual, deixando os trabalhadores da rua perdidos em uma espécie de limbo. Cada minuto parecia arrastar-se com crueldade, enquanto os rostos cansados de barbeiros, mecânicos e taberneiros carregavam a desgosto de uma espera inútil.
Na taberna do senhor Guaxi, os homens, estafados e quase mortos de tanto trabalhar, tinham desistido. Recostar-se nos parapeitos das casas, como se buscassem refúgio da opressão daquele dia. Os corpos largados de forma desleixada eram como esculturas de uma humanidade desgastada, com os rostos voltados para o chão e os peitos enterrados nos soalhos abandonados da rua.
O cenário era de uma desolação quase palpável. A rua, com seus basaltos desgastados, suas acácias nuas e seus fios de luz ocupados por aves indiferentes, aparentava assistir, impassível, à luta inglória daqueles que ali viviam. Era um retrato cru da condição humana, onde cada detalhe narra uma crônica de luta contra o inevitável, contra o cansaço, contra o silêncio que devorava as horas e transformava a tarde em um abismo sem fim.
O senhor Pinikeiro, figura robusta e de gestos amplos, conhecido pela sua tentativa constante de manter a moral elevada entre os trabalhadores, parecia sucumbir ao mesmo peso que esmagava todos naquele dia. Nem mesmo as aulas de motivação, aquelas sessões repletas de frases ensaiadas e slogans de força interior, conseguiram produzir efeito suficiente para reacender o ânimo de seus homens. Eles estavam, cada um, tombados sob o peso de seus próprios cansaços, como estátuas imperfeitas, moldadas pela exaustão.
Aos 20 minutos depois das quatro da tarde, Pinikeiro ergueu o olhar. Algo o incomodava profundamente, um desconforto que ia além do
usual. A rua parecia estar presa em uma espécie de transe, uma pausa prolongada que desafiava a ordem natural das coisas. A barbearia estava parada, o senhor barbeiro sentado, de rosto fechado, olhando para as ferramentas como quem revê uma antiga desilusão. Na oficina, o fogão permanecia inútil, apesar de aparentar estar em condições. E ainda assim, nenhuma faísca, nenhuma chama; apenas a teimosia fria do metal e o esforço inglório do mecânico impregnado de óleo.
As acácias, nuas ou adornadas com folhas e flores, estavam estáticas, como se a própria natureza houvesse decidido suspender o movimento. Até mesmo o vento, que geralmente brincava com as copas das árvores, havia fugido, deixando um vazio opressor no ar. Os passarinhos, no entanto, pareciam alheios a tudo, compondo uma miscelânea de cores sobre os fios de eletricidade. Era um contraste irônico e cruel: enquanto os homens definhavam sob o peso da apatia, as aves decoravam a rua como se fosse o prelúdio de uma celebração.
Pinikeiro observava tudo isso com uma inquietação que crescia a cada instante. Algo naquela tarde parecia diferente, quase sobrenatural, mas ele não conseguia definir o quê. "Quando se espera a receção de uma rainha, enfeitam-se as ruas assim," pensava, tentando encontrar algum sentido no cenário surreal diante de si. Mas não havia rainha, nem festa, nem propósito visível para aquele silêncio esmagador que tomava conta de tudo.
Os trabalhadores, estafados de tanto encherem betão ao longo do dia, jaziam nos parapeitos das casas ou diretamente no chão, corpos pesados e espíritos ausentes. Era como se o trabalho tivesse drenado não apenas a força, mas também a esperança. Eles não se moviam, nem falavam; apenas existiam, como peças largadas em um tabuleiro abandonado.
E o sino? Ah, o sino! A ausência do toque enuncia mais alto do que qualquer som. Aquela falha na rotina, aquele lapso do tempo marcado,
parecia simbolizar algo maior. Era como se o mundo tivesse se esquecido de seguir adiante, deixando a Rua do Barbeiro à mercê de um momento suspenso entre o passado e o presente, entre a vida e a inércia.
Pinikeiro, de pé no meio daquela cena, sentiu-se esmagado por um vazio que ia muito além da ausência do sino. Era como se o dia tivesse perdido o seu significado, e com ele, a própria humanidade daqueles que o cercavam.
A porta abriu-se com um estrondo suave, quase ritualístico, como se aquele simples gesto tivesse o poder de rasgar a apatia que se abatia sobre a rua. Os papeis de cimento, esquecidos e endurecidos pelo tempo, ganharam vida. Levantaram-se num turbilhão de poeira e movimento, dançando ao capricho de um vento que chega sem aviso, limpando a rua parecendo querer apagar os vestígios de um dia exausto e sem propósito.
O vento, entretanto, não trazia apenas o movimento; trazia algo mais, algo quase sobrenatural. Uma fragrância doce, envolvente, misturava-se ao ar, espalhando-se com rapidez, de maneira que se procurasse alcançar cada recanto daquela rua cansada. Não era um aroma comum. Era quente, cheio de notas que evocavam flores desconhecidas, misturadas a um leve toque de terra molhada. Não vinha de lugar algum, mas parecia ter origem na própria essência de alguém. Era o perfume de uma mulher, uma presença que começava a se revelar a cada instante que passava.
E como se por encanto, tudo na rua parecia responder a essa chegada. Os trabalhadores, até então largados no chão e nos soalhos abandonados, começaram a se mover. Mas não de forma brusca; seus corpos reagem como se embalados por uma música lenta e imperceptível, saltitando em movimentos contidos, acompanhando o ritmo de um coração que batia devagar, quase do jeito que a
repercussão de um tambor distante. Cada salto parecia desenhar no ar uma melodia, e o cenário de estagnação começava a dissolver-se.
Então, ela apareceu. Descendo os degraus da escada, seus passos marcavam o chão com uma precisão quase solene. Cada toque do tacão contra os degraus imitava como a seta que bate num obstáculo ou um amor mal correspondido que insiste bater nos muros de um coração que só lhe dá um insistente desamor, um lembrete de que o tempo, por mais que houvesse parado, agora retomava seu curso. Os olhos dos patrões, dos trabalhadores, de todos os que estavam ali, estavam presos àquela figura que se movia em direção ao portão da rua da barbearia.
Cada degrau que ela descia era uma nota de um concerto que se anuncia, uma sinfonia que ganhava corpo a cada instante. O som dos seus passos pareciam repercutir nos corações exaustos daqueles homens, que, sem explicação, começaram a bater com mais força. Era como se algo dentro deles, há muito tempo adormecido, tivesse despertado. O suor que antes escorria em seus rostos parecia secar, e as suas mãos, calejadas pelo trabalho incessante, tremiam de maneira imperceptível.
Finalmente, ela alcançou o portão. E naquele instante, tudo pareceu congelar. O vento parou como que reverente, as árvores permanecem imóveis em respeito, e os olhos de todos estavam nela. Não havia dúvida: sua presença tinha o poder de transfigurar. Mas o que exatamente aconteceria a partir dali ninguém sabia. Era como se ela fosse a resposta para uma pergunta que ninguém tinha formulado, mas que todos carregavam em silêncio, no fundo de suas almas.
Da janela da sua casa, ela observava o cenário distante, como quem se preparava para um ritual. A casa do barbeiro parecia um ponto pequeno ao fundo da estrada, quase insignificante, mas era o centro de toda a comoção daquele dia. Em cinco minutos, precisava atravessar o
caos que parecia consumir a rua e chegar à igreja antes das quatro e meia.
O primeiro minuto foi uma dança com o chão. Seus passos precisos desviavam dos basaltos entreabertos pelas cheias de setembro, como se soubesse exatamente onde pisar para não tropeçar. Não era apenas habilidade; era uma espécie de graça natural que fazia com que cada movimento parecesse planejado, quase coreografado.
No segundo minuto, a rua começou a mudar. Sua presença, como um perfume invisível, espalhou ternura por onde passou. As pessoas, antes curvadas pelo cansaço, levantavam o olhar, como se algo nelas fosse tocado por uma força que não conseguiam entender.
No terceiro minuto, a estrada curvou-se, e ela, com a naturalidade de quem sabe que todos os olhos a seguem, cruzou-a perigosamente provocante. Vestia uma calça jeans tão justa que parecia moldada em seu corpo, mas que, estranhamente, não restringe seus movimentos. Suas pernas firmes e sua cintura marcada pareciam desafiar a lógica, atraindo olhares que eram ao mesmo tempo admirados e incrédulos.
No quarto minuto, ela se aproximou, o som dos seus saltos repercute como o prelúdio de algo inevitável. Quando passou pelo barbeiro e pelos trabalhadores, lançou um “olá” com a suavidade de quem distribui bênçãos. Seu batom negro, opaco, parecia selar algo inquebrantável em sua boca. Quando falava, seus lábios pareciam carregar um feitiço; quando calava, era perdição pura.
Antes de o quarto minuto terminar, o impossível aconteceu. O fogão, que parecia condenado à inutilidade, finalmente se acendeu, cuspindo uma chama viva e pulsante. As árvores, até então imóveis, voltaram a balançar suavemente, como se dançassem ao som de uma melodia confidencial. Os trabalhadores, antes jogados no chão como mortos, levantaram-se com renovado vigor, enquanto o barbeiro, tomado por um contentamento quase infantil, viu sua velha máquina voltar à vida.
No quinto minuto, exatamente às quatro e meia, ela entrou na igreja. O sino, que havia mantido a rua em um silêncio sufocante, finalmente tocou. O som profundo e metálico reverberou por toda a vila, marcando o fim da jornada. Os trabalhadores, como que libertados de uma maldição, foram dispensados de seus ofícios. O dia, que parecia perdido, reencontra seu ritmo.
Ela caminhou com a mesma determinação até o altar e sentou-se à frente do padre, enquanto os passarinhos que antes adornavam os fios elétricos agora pousavam no sino da igreja. A missa começou, mas não antes de o padre, com a ponta da luneta, fixar o olhar na figura que acabava de entrar.
Ele resmungou algo que ninguém mais ouviu.
— Que pernas, que bunda, que beleza, que mulher.
Por um instante, seus olhos vagaram pela multidão, tentando recuperar o decoro, mas, inevitavelmente, voltaram a ela. Com uma expressão que oscilava entre admiração e reprovação, ele sussurrou, quase como uma prece desesperada:
— Pelo sinal da santa cruz, livrai-nos dessa diaba.
E assim a missa começou. A rua do barbeiro, antes carregada de cansaço e desalento, voltava ao normal, como se aquele episódio não passasse de um delírio compartilhado. Mas todos que a haviam visto sabiam, no fundo, que aquele dia não seria esquecido tão cedo. Algo na presença daquela mulher parecia ter tocado nas engrenagens do mundo, mesmo que por um breve momento.
II
Cânticos preenchiam o ar, como se as vozes retumbaram de uma dimensão que misturava o tempo. O mundo, talvez, precisasse mais dessas pessoas que cantavam mesmo em momentos de desalento, mas ali, naquela manhã, os cânticos pareciam um sussurro da infinidade. Da rua até o final da praça, as melodias flutuavam, entremeadas de nostalgia e novidade.
A missa de domingo estava prestes a terminar. Os carros na rua da igreja, já agrupados de forma quase geométrica, formavam uma barreira silenciosa entre a praça e a rua principal. O ambiente estava envolto numa quietude expectante, quebrada apenas pelo som discreto de motores que circulavam lentamente, de maneira que os condutores buscassem confirmar se o fluxo humano da missa de sábado havia se repetido.
Lá dentro, o padre lia a última folha dos avisos, sua voz soltando no interior da igreja como um sopro que acariciava os quadros dos santos e as estátuas de barro presente no interior. Ao dar o sinal de despedida, o movimento começou. Primeiro, as crianças. Elas correram para a porta com uma urgência que parecia nascer de uma liberdade recém-descoberta, ultrapassando os velhos, os adultos e os jovens, que seguiam em um ritmo mais contido, como se carregassem o peso de pensamentos que as crianças ainda desconheciam.
No penúltimo banco, ao fundo, Pitxitxu e Nhu Preto Boa Vida permaneciam sentados. Havia algo inabalável na presença deles, igual a pilares da uma igreja que começava a esvaziar-se. Enquanto o interior do templo se despedia das pessoas, os dois pareciam resistir ao movimento, seus olhares fixos em algum ponto invisível, talvez em um diálogo interno ou em uma compreensão que excedia o momento.
Os bancos de madeira começaram a revelar suas formas simples, desgastadas, e o ruído dos passos repercutia como um murmúrio melancólico. As estátuas dos santos, de barro, mantinham seus olhares fixos, como se testemunhasse, impassíveis, a transformação do sagrado para o cotidiano. Os quadros nas paredes, emoldurados por molduras pesadas, aparentavam carregar o peso de crónicas antigas, enquanto se acomodavam novamente no cenário diário de vazio e quietude que tomava conta da igreja durante a semana.
Do lado de fora, o sino da igreja ainda não havia soado, mas seu silêncio tinha um peso próprio. Era um silêncio que conversava com o tempo, suspenso, como se o espaço entre o último cântico e o primeiro passo para fora da igreja fosse um portal para algo que ninguém conseguia nomear.
No fundo, Pitxitxu ergueu lentamente o olhar. Seus pensamentos, mais densos que a brisa matinal, atravessavam o espaço vazio da igreja. Para ele, cada canto e cada sombra carregam sentidos ocultos, histórias que não podiam ser ditas em voz alta, mas que assonavam segredos no interior de sua mente. Ao seu lado, Nhu Preto Boa Vida segurava as mãos firmemente, de quem tentava conter algo que ameaçava transbordar. Havia em seus olhos um reflexo de saudade, misturado a um cansaço que parecia não ter origem.
Quando o sino finalmente tocou, o som atravessou a rua, os carros e a praça, espalhando-se como ondas que vibram nas almas de todos ali presentes. Para muitos, era apenas um sinal, o final de mais uma missa. Mas, para aqueles que prestavam atenção, como Pitxitxu e Nhu Preto, era um lembrete da fragilidade da existência, um rumor que conectava o céu e a terra, o sagrado e o profano, a música e o silêncio.
E assim, a igreja voltou ao seu estado natural, habitada apenas pelos santos de barro e pelas memórias invisíveis que permaneciam presas às suas paredes.
— Que o caminho seja leve, mas firme, como o vento que ajusta as velas. Vá em paz, menina.
A voz do padre repercutiu com um eco que parecia vibrar nas paredes e no coração da jovem. Ela parou, ainda sobre o batente da porta, como se aquelas palavras tivessem prendido seus pés ao chão. O vento que entrava pela porta aberta trouxe consigo um murmúrio que brincava com os cabelos soltos da mulher, dançando em volta de seu rosto igual a um véu invisível.
O sorriso confuso ainda pairava em seus lábios. A abertura entre os dentes, que parecia desafiar qualquer definição comum de beleza, brilhava à luz do final de tarde, transformando-se em algo mais, como se guardasse segredos que nem mesmo ela sabia nomear. Os olhos dos santos, imóveis e eternos, continuavam fixados nela. Santo Amaro, agora em seu novo lugar, parecia inclinar-se ligeiramente, como se quisesse escutar seus pensamentos.
Pitxitxu e Nhu Preto Boa Vida seguiram-na com cuidado. A distância entre eles era suficiente para preservar a ilusão de anonimato, mas próxima o bastante para que seus passos sejam escutados junto aos dela na calçada de basaltos desalinhados. Eles caminhavam quase em uníssono, igual às sombras que não ousavam ultrapassar a presença da dama de salto alto.
Quando ela finalmente cruzou o limiar da igreja, a tarde hesitou. O sol, que começava a mergulhar no horizonte, congelou por um instante, deixando o céu num degradê quase sobrenatural. Era como se o mundo estivesse esperando algo acontecer.
O padre, ainda no altar, observava tudo com olhos que sabiam mais do que diziam. Quando ela virou o rosto uma última vez, os dois se encontraram em um olhar que era ao mesmo tempo um adeus e uma prece.
— Lembre-se, menina, os passos que damos não caminham apenas pela terra, mas também pelos corações que tocamos.
Ela tentou responder, mas as palavras que estavam prestes a saltar de sua boca hesitaram. Era tipo, que cada sílaba carregasse um peso que a impedia de atravessar o ar. Ainda assim, o padre pareceu compreender. Ele fechou os olhos com um leve sorriso, com a certeza do que ela ia dizer. Do lado de fora, o vento voltou a soprar, levantando poeira e pétalas secas que haviam caído das árvores ao redor. O salto agudo de seus sapatos cravou-se mais uma vez nos basaltos, mas ela não parou. Seus passos ritmados acudiam o som pela rua quase vazia, e o silêncio que os acompanhava era tão cheio de significado quanto as palavras não ditas.
Pitxitxu e Nhu Preto continuaram seguindo-a, agora com olhares diferentes. Não era apenas curiosidade ou vigilância. Havia algo reverente em seus gestos, do jeito que pareciam souber que estavam presenciando um momento que jamais seria repetido.
Quando ela desapareceu na curva da estrada, o sino da igreja finalmente soou. Um toque profundo e poderoso que parecia vir não apenas do alto da torre, mas das entranhas da terra. O som espalhou-se como uma onda, despertando as sombras que se alongavam pela praça e iluminando, por um instante, o coração de todos que o escutaram.
O padre fez o sinal da cruz e murmurou para si mesmo:
— Que assim seja.
E, ao longe, mesmo invisível, aparentava que ela havia respondido. — Quero tanto fazer contigo uma loucura...
As palavras do padre, ditas com uma entonação inesperada, assonaram pelo espaço vazio da igreja. Pitxitxu e Nhu Preto Boa Vida, ainda à sombra de um dos bancos do fundo, congelaram no lugar. O olhar de ambos se cruzam num misto de espanto e incredulidade.
— Ele também quer a menina! — sussurrou Pitxitxu, com uma urgência que igual o murmúrio do vento entre as paredes da igreja. — Que tarado esses padres de hoje em dia...
Nhu Preto Boa Vida, mais contido, deu-lhe um leve empurrão no ombro, como quem tenta evitar que as palavras tomem vida própria.
— Para com isso, Pitxitxu. Não sabes o que estás a dizer.
— Tu também queres-me passar à frente? — rebateu Pitxitxu, indignado, mas com um tom que misturava ciúme e brincadeira.
Boa Vida respirou fundo, fixando o olhar na grande porta por onde a mulher acabara de sair. Havia algo na atmosfera que ele não conseguia explicar. Uma eletricidade, uma inquietude, como se o espaço sagrado estivesse carregado de algo que ia além do visível.
— Não estamos em situação de nos concorrermos um contra o outro — respondeu Boa Vida, com uma voz mais grave e séria. — Essa mulher... ela não é para nós, Pitxitxu.
Pitxitxu fez uma careta, mas não retrucou. Algo na fala de Boa Vida o fez pensar. O som do sino ainda pairava no ar, misturando-se ao crepúsculo que começava a cair.
Lá na frente, o padre permaneceu parado, estático, como se nem sequer tivesse consciência do que havia dito. Ou talvez tivesse, mas já não fosse ele mesmo. Seus olhos pareciam vidrados, presos no vazio, enquanto o som do vento atravessava a igreja, trazendo de volta o sussurro distante dos cânticos que ainda soavam pelas ruas.
— Ele está encantado — murmurou Pitxitxu. — Como todos nós...
Boa Vida olhou para ele, surpreso com a seriedade na voz do companheiro. E, pela primeira vez, concordou em silêncio.
Naquele instante, a igreja parecia um organismo vivo, respirando com o vento, pulsando com a energia invisível que aquela mulher deixara para trás. As estátuas dos santos, os bancos vazios, o altar em silêncio, tudo parecia olhar, sentir, e se inclinar em direção à porta por onde ela havia saído.
— Então é isso... — sussurrou Boa Vida, quase para si mesmo. — Ela é como o vento: ninguém a possui, mas todos a sentem.
Pitxitxu inclinou a cabeça, refletindo por um momento. E, sem dizer mais nada, os dois saíram juntos, pisando na penumbra que agora se instalava dentro da igreja, até a luz parecia cansada de brilhar diante daquele mistério.
Enquanto Pitxitxu e Nhu Preto Boa Vida discutiam em voz baixa no fundo da igreja, num sussurro que parecia ser absorvido pelas sombras crescentes, ela permaneceu firme, se o mundo girasse em torno de sua presença, não mudava nada do seu cabelo.
Seu olhar, calmo e direto, fixou-se no padre, que por sua vez parecia dividido entre o peso de sua batina e a leveza dos pensamentos que sua mente insistia em construir. Ela sabia o que causava nos homens. Era uma certeza que carregava desde cedo, como quem descobre uma arma poderosa e aprende a manejá-la com precisão.
Metade deusa, metade demónio, sua silhueta evidenciava condensar toda a força e a fragilidade do mundo. O modo como seus glúteos se moviam em perfeita sincronia, as pernas longas que aparentavam mais imponentes do que as colunas da própria igreja, e aquele olhar... oh,
aquele olhar que não apenas atravessava, mas esculpia desejos no íntimo de quem ousasse enfrentá-lo.
Se ao menos os basaltos tivessem vida, pensava ela. Se tivessem olhos e sentimentos, as estradas seriam menos solitárias. Cada passo seu, cada ondular de quadris era como uma bênção que renovava até os seres inanimados. Até as pedras, eternas em seu silêncio e imobilidade, pareceriam vivas sob a magia que ela emanava.
O padre, ainda preso ao altar, sentia o peso do instante como um fardo insuportável. Sua garganta estava seca, e o coração parecia desafiar a liturgia, batendo de forma desordenada. Então ela falou, com uma voz doce e ao mesmo tempo carregada de uma força que parecia fixa além do espaço físico:
— Senhor padre, o que deseja de mim? — perguntou, e a simplicidade da frase tinha o peso de uma prece. — Se está ao nosso alcance, tudo podemos fazer.
Aquelas palavras, ditas com tanta serenidade, pareciam despir o padre de sua autoridade, de sua batina, de sua humanidade. Ele hesitou, lutando contra algo invisível, algo que ela sabia estar ali, porque o criara, o alimentara com cada movimento seu.
— Desejo... — começou ele, mas a voz fraquejou.
Pitxitxu e Boa Vida, atentos como cães farejando perigo, trocaram olhares no fundo da igreja. O que sairia da boca daquele homem? Seria a confissão de um desejo que todos, no fundo, compartilhavam, mas que ninguém ousava verbalizar?
— Desejo... — repetiu o padre, agora olhando para o chão, como se buscasse ali uma redenção que sabia ser impossível. — Que encontres... paz.
Ela sorriu. Um sorriso enigmático, que parecia misturar gratidão e triunfo. Seus lábios se abriram novamente, mas dessa vez não para falar. Apenas para deixar que o silêncio ocupasse o espaço entre eles, um silêncio que dizia mais do que qualquer palavra poderia dizer.
Ao fundo, Pitxitxu murmurou para Boa Vida:
— Paz? Ele diz paz, mas deseja é guerra...
Boa Vida não respondeu. Apenas continuou observando a cena, como quem testemunha algo sagrado e profano ao mesmo tempo.
Ela, por fim, virou-se. Seus saltos altos pupam pelas pedras do chão, e o som parecia carregar consigo uma promessa, um enigma, ou talvez uma maldição.
O padre permaneceu parado, igual a uma estátua, enquanto ela desaparecia pela porta da igreja. As estátuas dos santos, ainda imóveis, pareciam ter ganhado um brilho diferente nos olhos, quão, se até elas fossem incapazes de permanecer alheias à sua presença.
O padre sorriu satisfeito, um sorriso que parecia carregar o peso de séculos de desejo reprimido e redenção frustrada. Seus passos eram lentos, mas firmes, enquanto se aproximava dela. A distância entre os dois foi diminuindo até que seus rostos quase se tocassem, e ela, sentindo o calor de sua presença, respirava cada vez mais depressa.
Cruzaram os olhares, e naquele instante parecia que o mundo havia parado. Não havia mais igreja, nem santos, nem céu ou inferno, apenas os dois. Ele levantou as mãos com uma suavidade perturbadora, tocando levemente o contorno de seu rosto como se estivesse prestes a quebrar algo precioso. Então, pronunciou uma única palavra, baixa, mas carregada de uma força esmagadora:
— Exatamente.
Ela fechou os olhos de imediato, como quem aceita um destino inescapável, como uma rezadora de terços em casas de mortos, o ar ao redor parecia se encolher, tornando-se pesado, denso, como se a igreja inteira prendesse a respiração, então o barulho habitual da sala desapareceu. O ranger dos bancos, o sussurro das sombras nos cantos, até mesmo o vento que costumava cantarolar pelas janelas fechadas havia cessado. O silêncio era infernal, cada santo, morto e sacrossanto, observasse a cena com olhos imóveis, mas atentos.
Santo Amaro, que recém havia sido movido de lugar, parecia espreitar os dois, forçado a testemunhar aquele momento. Imóvel, de pedra e barro, mas com uma presença tão forte quanto a de uma entidade viva. Talvez estivesse julgando, ou talvez estivesse simplesmente resignado, pois, afinal, até os santos sabem que há coisas que nem a eternidade pode impedir.
Os dois, tão próximos, pareciam estar em um mundo próprio, onde o sagrado e o profano se entrelaçavam em uma dança perigosa. Ele sentiu o cheiro dela, uma mistura de perfume e calor humano, algo ao mesmo tempo terreno e celestial. Ela, por sua vez, sentia o peso de sua presença, tão denso quanto uma confissão que jamais será feita.
O padre hesitou. Por um breve momento, parecia estar preso entre o papel que lhe fora imposto e o homem que ainda existia por trás da batina. Seus dedos tremiam ao tocar a linha do queixo dela, mas não recuaram.
E então, como se uma força invisível rompesse o encanto, ela abriu os olhos. No instante em que o fez, algo na igreja mudou. O silêncio foi quebrado por um leve ranger vindo do fundo da sala. Não era Pitxitxu, não era Boa Vida. Era algo mais.
Ela deu um passo para trás, como quem recupera o controle após um momento de vertigem. Santo Amaro, desta vez, mesmo imóvel, parecia observá-los com uma reprovação ou de tristeza, difícil dizer.
— Senhor padre... — disse ela, sua voz agora firme, mas carregada de uma estranha serenidade. — Exatamente o quê?
O padre não respondeu de imediato. Seus lábios se moveram, mas nenhum som saiu. Ele parecia engasgado, não com palavras, mas com o peso do que não podia dizer.
Ela sorriu. Um sorriso enigmático, que deixava dúvidas sobre quem, afinal, estava no controle. Virou-se e começou a caminhar em direção à porta. Seus saltos outra vez se fizeram ouvir pela igreja, como marteladas no coração do padre, que permaneceu parado, com os braços ainda erguidos, sem saber se rezava ou desistia. E naquele instante, o vento voltou a soprar, trazendo consigo o som dos sinos ao longe. Mas desta vez, o som parecia diferente, como se a própria igreja chorasse por algo perdido para sempre.
Enquanto o padre continuava a vasculhar sua bolsa com uma expressão cada vez mais desesperada, ela, sentindo o tempo escorrer pelos dedos, decidiu quebrar o silêncio, abrindo os olhos com uma calma desconcertante. A luz que entrava pelas janelas da igreja iluminava seu rosto de maneira peculiar, conferindo-lhe uma aura quase etérea.
— Senhor padre, vou-me embora. Tenho uma guerra com os basaltos para fazer. — Sua voz era tranquila, como se a luta fosse apenas mais uma parte do seu cotidiano.
O padre, ainda buscando freneticamente por algo que não conseguia encontrar, parou por um instante. a carga de suas palavras parecia não se alinhar com a gravidade da situação, mas ele não teve tempo para ponderar.
— Como assim? — Perguntou ele, a confusão estampada no rosto, enquanto suas mãos continuavam a revirar a bolsa, com a esperança de encontrar algo que o libertasse daquela inquietação.
Ela o olhou com um sorriso ligeiramente irônico, quase como se soubesse exatamente o que ele iria dizer.
— Sim, basalto, senhor.
O padre parecia ainda mais perdido, as palavras tropeçando na boca antes de sair.
— O que é isso? Uma mulher do seu porte não pode permitir que homem algum lhe desrespeite, e muito menos uma guerra entre vocês.
Ela o observou atentamente, como se pesasse cada palavra do padre com a mesma precisão que escolhia seus passos.
— A estrada. As pedras da cidade. Elas brigam com o meu salto alto e me obrigam a andar como aquelas bonecas de passarela. Também com essa arquitetura de Notre-Dame que esses sapatos suportam. — Ela disse com um tom entre o sério e o cínico, sua expressão desafiando o padre a questionar mais.
Antes de ele poder reagir, ela fez uma leve pausa, como se estivesse se preparando para lançar uma pergunta, mas algo a fez hesitar. O padre, por sua vez, mais perdido que antes, tornou a perguntar:
— Como assim?
Ela olhou-o com um olhar penetrante, mas para fazer com que ele fosse mais do que um simples espectador. Seus olhos fixaram os dele por um momento longo, quase carregado de expectativas. Ela não esperou pela resposta, movendo-se com a leveza de quem já sabia que a batalha estava vencida, apenas aguardando a queda do próximo movimento, o próximo passo do jogo. Ela sabia que a guerra não era contra o padre, mas contra algo maior. Contra a cidade. Contra as pedras que formavam o labirinto de seu destino.
Assim, antes que o padre pudesse devolver uma nova questão ou resposta, ela se virou e seguiu em direção à porta, seus saltos fazendo um eco cada vez mais distante enquanto se afastava, como um lembrete silencioso de que, por mais que tentassem, as pedras e os homens jamais poderiam controlá-la.
A cena ficou marcada pelo som abafado das vozes dos dois, que lamentavam a situação com uma mistura de desconfiança e cumplicidade. As palavras trocadas entre boa vida e pitxitxu pareciam enredadas em um jogo de verdades veladas, onde ambos se apoiavam nas falhas e limitações do outro, criando uma rede de apoio e desespero ao mesmo tempo. A tensão do momento, o peso das palavras do padre e as expectativas que pairavam no ar eram apenas mais um reflexo da própria luta interna daqueles homens, que, como a cidade e as pedras que os cercavam, pareciam eternamente presos a uma condição que não podiam controlar.
Pitxitxu, com a sua visão turvada pela cegueira, parecia compreender a dinâmica humana de uma maneira única, como alguém que sente as vibrações de um ambiente sem ver suas cores. Ele tocava nas palavras com uma sensibilidade quase sobrenatural, buscando significado em cada gesto, em cada movimento.
Boa vida, com a sua própria deficiência, tinha uma visão crua da realidade, sem as ilusões da beleza ou da perfeição. Ele via as pessoas pela ação, pela intenção, não pelos olhos. E, naquele momento, ele compreendia a complexidade das relações humanas mais do que qualquer outra coisa, o que o fazia se sentir parte da engrenagem que movia a cidade.
— Não é fácil, eu sei — respondeu boa vida, a voz carregada de uma sabedoria amarga. — O que somos, o que temos, é o que somos, e nós não escolhemos, apenas lidamos com o que a vida nos deu. Você tem sua visão única, eu tenho meus próprios demônios.
Pitxitxu sorriu, Ele não precisava de olhos para enxergar a verdade que estava diante deles, mas a falta de visão física deixava espaço para que o restante do mundo se desdobrasse diante dele em formas e significados que os outros talvez não percebessem.
— Somos, como você disse, um reflexo um do outro, uma imagem quebrada da mesma essência. Mas nem sempre a guerra é perdida, talvez seja só a visão que nos engana. — Pitxitxu completou com um ar de sabedoria, ainda que imperfeita. Ele sabia que, de alguma forma, essa união de defeitos e limitações era o que os mantinha vivos, o que os fazia continuar a existir, mesmo no vazio das ruas de basalto e das pedras silenciosas.
Boa vida deu um suspiro profundo e riu, na simplicidade de um entendimento mútuo.
— E quem diria que dois pedaços de carne e osso, cheios de falhas, conseguiram entender tudo isso. Acho que você tem razão, a visão pode enganar, mas o que temos aqui — ele fez um gesto com a mão, abrangendo a rua e a cidade ao redor — isso é real.
Os dois se afastaram lentamente, cada um com seus próprios pensamentos, mas de alguma forma, mais próximos do que nunca, cada um alimentando-se das falhas do outro.
— Completamos um ao outro, disse o Boa Vida, enquanto cutucava o Pitxitxu, forçando sua atenção para o estranho momento.
A jovem fitava o padre, com um misto de desconfiança e curiosidade que, por um instante, parecia diluir a linha tênue entre o espiritual e o profano.
— O que é que queres de mim, padre? — Perguntou ela, sua voz trêmula, como se, no fundo, já soubesse a resposta. No entanto, a inquietação em seu tom denunciava uma fissura emocional, um atrito
que rasgava sua tranquilidade. Ela se alterava, como se o ar em volta a sufocasse.
Ele apenas apontou para suas pernas, mas a sugestão era clara. O padre o fez com serenidade, como se fosse um ritual pré-determinado. Ela não desviou o olhar.
— Queres isso? — Indagou, sua voz afiada, de modo que se desafiasse a moralidade do momento.
Ela, em um impulso, estendeu os braços, buscando nele algum tipo de resposta, de amparo. Ele correspondeu ao gesto, mas o toque que se seguiu era mais pesado do que um abraço: parecia a união de dois mundos que se aproximavam, enquanto o ambiente se tornava irrespirável, estranho.
— E agora, padre? — Perguntou ela, as palavras como um suspiro perdido entre o desejo e o medo. O padre, sem pressa, levou uma mão à bolsa, retirando algo que parecia comum, mas o movimento de rasgar o plástico que a envolvia fez o tempo se distender.
— Mas... um padre pode fazer isso? — Sua pergunta flutuava na atmosfera, entre dúvida e revolta, como uma onda que toca uma rocha e logo se desfaz.
— Sim, pode. É absolutamente normal, atualmente — disse ele com uma calma que desafiava o entendimento. O tempo parecia amolecer, derreter, e a sala tornava-se uma extensão do seu próprio ser.
Ele parou por um momento, o ar denso entre eles, antes de finalmente completar a tarefa. Quando terminou de rasgar o plástico, olhou-a nos olhos com uma expressão quase maternal, como se tivesse oferecido a ela o conhecimento mais profundo, aquele que não se aprende, mas se experimenta.
Ela não podia acreditar. E ao não acreditar, a dúvida se enraizava mais fundo, tornando-se uma sombra que se estendia sobre os seus pensamentos, como uma névoa impenetrável.
O padre, com os olhos agora completamente dilatados pela ação, sussurrou. A realidade e a fantasia colidiam dentro dela, deixando-a suspensa no limbo da incredulidade.
— Completamos um ao outro, disse o Boa Vida, enquanto cutucava o Pitxitxu, forçando sua atenção para o estranho momento.
—Novamente, O que é que queres de mim, padre? — Perguntou ela, sua voz trêmula, como se, no fundo, já soubesse a resposta.
Ele apenas apontou para suas pernas, mas a sugestão era clara. O padre o fez com serenidade.
— Queres isso? — Indagou, sua voz afiada.
O padre observou calmamente. Seu rosto não expressava dúvida, mas uma concentração densa. As mãos da jovem se moveram de maneira involuntária, esticando os cabelos em um gesto que parecia se dar em algum plano além da realidade. O padre, com movimentos meticulosos, sorriu suavemente.
O Sacerdote e a Dama de Salto Alto
Se alguém me dissesse, sem que eu próprio tivesse testemunhado, que aquele momento realmente aconteceu, juro que recusaria acreditar. Mas, como vi com os meus próprios olhos, narrarei os fatos tal como ocorreram. Tudo começou na Rua do Barbeiro, um cenário de contrastes onde o tempo parecia ter deixado a sua marca de maneira implacável.
Na parte esquerda da passadeira, o chão era um mosaico de opostos: basaltos habilmente talhados, que ainda ostentavam a perfeição de mãos cuidadosas, misturavam-se a pedras em estado bruto, irregulares e já gastas pelo passar dos anos e o incessante pisar das gentes. Era como se a vida daquela rua estivesse cravada ali, no diálogo entre a rudeza e o engenho humano.
Do lado direito, outro panorama de intermitências: trechos cimentados com argamassas de tonalidade desbotada eram interrompidos por blocos de basalto, onde a irregularidade não se mostrava menos expressiva. As partes cimentadas revelavam fissuras que se expandiram como veias, denunciando o esforço constante de resistir à humidade e ao peso do tempo. A paisagem era emoldurada pelas acácias americanas que ladeavam a passadeira, dispostas em filas rigorosamente paralelas, como soldados fatigados após uma longa batalha. Durante o inverno, elas costumavam exibir folhas avermelhadas, um espetáculo que trazia um quê de vida e movimento àquele lugar. Contudo, naquele instante, todas as acácias estavam despidas, entregues à nudez austera da estação. Os ramos secos erguiam-se com as mãos enrugadas, implorando aos céus por misericórdia.
A atmosfera era soturna, como se a rua carregasse em si não apenas o desgaste físico, mas também um peso invisível, quase palpável, de crónicas não ditas, de vidas gastas por rotinas implacáveis. O ar,
embora imóvel, parecia saturado de melancolia. Era um daqueles momentos em que a decadência do ambiente parecia espelhar o desassossego humano, cada detalhe retumbando o irremediável envelhecimento de tudo que vive.
E foi ali, nesse cenário de detalhes brutais e inegáveis, que algo inesperado aconteceu. Na última casa da rua, que dava acesso à via que passava em frente à igreja, erguia-se a barbearia. Um edifício modesto, mas notável, especialmente naquela tarde em que a sorte parecia ter virado as costas ao barbeiro. Entre os ruídos abafados de conversas e os sons rotineiros da rua, um problema inesperado o atormentava: a máquina mais antiga, a que ele sempre confiara, decidira falhar. Era um objeto que jamais tinha dado qualquer sinal de desgaste, mas agora estava morta, inerte, como um relógio parado que teima em desafiar o tempo.
Do lado de fora, a visão era peculiar. No fio de luz elétrica que conectava a barbearia às casas vizinhas, uma fileira de passarinhas pendurou-se de maneira quase disciplinada, uma ao lado da outra, formando uma linha que parecia infinita. Mais de dez metros de pequenos corpos emplumados, balançando levemente ao ritmo de uma brisa que nem sempre se fazia sentir. Eram como testemunhas silentes daquele caos contido, observando do alto a melancolia das vidas que se desenrolaram abaixo.
Na oficina ao lado, um homem encharcado de óleo queimado batalhava contra um fogão a petróleo que modestamente se recusava a acender. Era uma guerra desigual, em que ele insistia em encher o recipiente de combustível, apenas para vê-lo vazar sem que nenhuma chama surgisse. A cada tentativa frustrada, o rosto do mecânico parecia escurecer ainda mais, não apenas pelo óleo, mas pela frustração que se acumulava em gestos desesperados. A cena era um quebra-cabeça absurdo, onde o esforço humano parecia desabar diante da teimosia de objetos inanimados.
Para completar o quadro, o sino da igreja, que deveria anunciar o tempo com pontualidade, manteve-se em um silêncio perturbador. Não tocou às quatro, nem às quatro e meia. Era como se o tempo tivesse se recusado a seguir o curso habitual, deixando os trabalhadores da rua perdidos em uma espécie de limbo. Cada minuto parecia arrastar-se com crueldade, enquanto os rostos cansados de barbeiros, mecânicos e taberneiros carregavam a desgosto de uma espera inútil.
Na taberna do senhor Guaxi, os homens, estafados e quase mortos de tanto trabalhar, tinham desistido. Recostar-se nos parapeitos das casas, como se buscassem refúgio da opressão daquele dia. Os corpos largados de forma desleixada eram como esculturas de uma humanidade desgastada, com os rostos voltados para o chão e os peitos enterrados nos soalhos abandonados da rua.
O cenário era de uma desolação quase palpável. A rua, com seus basaltos desgastados, suas acácias nuas e seus fios de luz ocupados por aves indiferentes, aparentava assistir, impassível, à luta inglória daqueles que ali viviam. Era um retrato cru da condição humana, onde cada detalhe narra uma crônica de luta contra o inevitável, contra o cansaço, contra o silêncio que devorava as horas e transformava a tarde em um abismo sem fim.
O senhor Pinikeiro, figura robusta e de gestos amplos, conhecido pela sua tentativa constante de manter a moral elevada entre os trabalhadores, parecia sucumbir ao mesmo peso que esmagava todos naquele dia. Nem mesmo as aulas de motivação, aquelas sessões repletas de frases ensaiadas e slogans de força interior, conseguiram produzir efeito suficiente para reacender o ânimo de seus homens. Eles estavam, cada um, tombados sob o peso de seus próprios cansaços, como estátuas imperfeitas, moldadas pela exaustão.
Aos 20 minutos depois das quatro da tarde, Pinikeiro ergueu o olhar. Algo o incomodava profundamente, um desconforto que ia além do
usual. A rua parecia estar presa em uma espécie de transe, uma pausa prolongada que desafiava a ordem natural das coisas. A barbearia estava parada, o senhor barbeiro sentado, de rosto fechado, olhando para as ferramentas como quem revê uma antiga desilusão. Na oficina, o fogão permanecia inútil, apesar de aparentar estar em condições. E ainda assim, nenhuma faísca, nenhuma chama; apenas a teimosia fria do metal e o esforço inglório do mecânico impregnado de óleo.
As acácias, nuas ou adornadas com folhas e flores, estavam estáticas, como se a própria natureza houvesse decidido suspender o movimento. Até mesmo o vento, que geralmente brincava com as copas das árvores, havia fugido, deixando um vazio opressor no ar. Os passarinhos, no entanto, pareciam alheios a tudo, compondo uma miscelânea de cores sobre os fios de eletricidade. Era um contraste irônico e cruel: enquanto os homens definhavam sob o peso da apatia, as aves decoravam a rua como se fosse o prelúdio de uma celebração.
Pinikeiro observava tudo isso com uma inquietação que crescia a cada instante. Algo naquela tarde parecia diferente, quase sobrenatural, mas ele não conseguia definir o quê. "Quando se espera a receção de uma rainha, enfeitam-se as ruas assim," pensava, tentando encontrar algum sentido no cenário surreal diante de si. Mas não havia rainha, nem festa, nem propósito visível para aquele silêncio esmagador que tomava conta de tudo.
Os trabalhadores, estafados de tanto encherem betão ao longo do dia, jaziam nos parapeitos das casas ou diretamente no chão, corpos pesados e espíritos ausentes. Era como se o trabalho tivesse drenado não apenas a força, mas também a esperança. Eles não se moviam, nem falavam; apenas existiam, como peças largadas em um tabuleiro abandonado.
E o sino? Ah, o sino! A ausência do toque enuncia mais alto do que qualquer som. Aquela falha na rotina, aquele lapso do tempo marcado,
parecia simbolizar algo maior. Era como se o mundo tivesse se esquecido de seguir adiante, deixando a Rua do Barbeiro à mercê de um momento suspenso entre o passado e o presente, entre a vida e a inércia.
Pinikeiro, de pé no meio daquela cena, sentiu-se esmagado por um vazio que ia muito além da ausência do sino. Era como se o dia tivesse perdido o seu significado, e com ele, a própria humanidade daqueles que o cercavam.
A porta abriu-se com um estrondo suave, quase ritualístico, como se aquele simples gesto tivesse o poder de rasgar a apatia que se abatia sobre a rua. Os papeis de cimento, esquecidos e endurecidos pelo tempo, ganharam vida. Levantaram-se num turbilhão de poeira e movimento, dançando ao capricho de um vento que chega sem aviso, limpando a rua parecendo querer apagar os vestígios de um dia exausto e sem propósito.
O vento, entretanto, não trazia apenas o movimento; trazia algo mais, algo quase sobrenatural. Uma fragrância doce, envolvente, misturava-se ao ar, espalhando-se com rapidez, de maneira que se procurasse alcançar cada recanto daquela rua cansada. Não era um aroma comum. Era quente, cheio de notas que evocavam flores desconhecidas, misturadas a um leve toque de terra molhada. Não vinha de lugar algum, mas parecia ter origem na própria essência de alguém. Era o perfume de uma mulher, uma presença que começava a se revelar a cada instante que passava.
E como se por encanto, tudo na rua parecia responder a essa chegada. Os trabalhadores, até então largados no chão e nos soalhos abandonados, começaram a se mover. Mas não de forma brusca; seus corpos reagem como se embalados por uma música lenta e imperceptível, saltitando em movimentos contidos, acompanhando o ritmo de um coração que batia devagar, quase do jeito que a
repercussão de um tambor distante. Cada salto parecia desenhar no ar uma melodia, e o cenário de estagnação começava a dissolver-se.
Então, ela apareceu. Descendo os degraus da escada, seus passos marcavam o chão com uma precisão quase solene. Cada toque do tacão contra os degraus imitava como a seta que bate num obstáculo ou um amor mal correspondido que insiste bater nos muros de um coração que só lhe dá um insistente desamor, um lembrete de que o tempo, por mais que houvesse parado, agora retomava seu curso. Os olhos dos patrões, dos trabalhadores, de todos os que estavam ali, estavam presos àquela figura que se movia em direção ao portão da rua da barbearia.
Cada degrau que ela descia era uma nota de um concerto que se anuncia, uma sinfonia que ganhava corpo a cada instante. O som dos seus passos pareciam repercutir nos corações exaustos daqueles homens, que, sem explicação, começaram a bater com mais força. Era como se algo dentro deles, há muito tempo adormecido, tivesse despertado. O suor que antes escorria em seus rostos parecia secar, e as suas mãos, calejadas pelo trabalho incessante, tremiam de maneira imperceptível.
Finalmente, ela alcançou o portão. E naquele instante, tudo pareceu congelar. O vento parou como que reverente, as árvores permanecem imóveis em respeito, e os olhos de todos estavam nela. Não havia dúvida: sua presença tinha o poder de transfigurar. Mas o que exatamente aconteceria a partir dali ninguém sabia. Era como se ela fosse a resposta para uma pergunta que ninguém tinha formulado, mas que todos carregavam em silêncio, no fundo de suas almas.
Da janela da sua casa, ela observava o cenário distante, como quem se preparava para um ritual. A casa do barbeiro parecia um ponto pequeno ao fundo da estrada, quase insignificante, mas era o centro de toda a comoção daquele dia. Em cinco minutos, precisava atravessar o
caos que parecia consumir a rua e chegar à igreja antes das quatro e meia.
O primeiro minuto foi uma dança com o chão. Seus passos precisos desviavam dos basaltos entreabertos pelas cheias de setembro, como se soubesse exatamente onde pisar para não tropeçar. Não era apenas habilidade; era uma espécie de graça natural que fazia com que cada movimento parecesse planejado, quase coreografado.
No segundo minuto, a rua começou a mudar. Sua presença, como um perfume invisível, espalhou ternura por onde passou. As pessoas, antes curvadas pelo cansaço, levantavam o olhar, como se algo nelas fosse tocado por uma força que não conseguiam entender.
No terceiro minuto, a estrada curvou-se, e ela, com a naturalidade de quem sabe que todos os olhos a seguem, cruzou-a perigosamente provocante. Vestia uma calça jeans tão justa que parecia moldada em seu corpo, mas que, estranhamente, não restringe seus movimentos. Suas pernas firmes e sua cintura marcada pareciam desafiar a lógica, atraindo olhares que eram ao mesmo tempo admirados e incrédulos.
No quarto minuto, ela se aproximou, o som dos seus saltos repercute como o prelúdio de algo inevitável. Quando passou pelo barbeiro e pelos trabalhadores, lançou um “olá” com a suavidade de quem distribui bênçãos. Seu batom negro, opaco, parecia selar algo inquebrantável em sua boca. Quando falava, seus lábios pareciam carregar um feitiço; quando calava, era perdição pura.
Antes de o quarto minuto terminar, o impossível aconteceu. O fogão, que parecia condenado à inutilidade, finalmente se acendeu, cuspindo uma chama viva e pulsante. As árvores, até então imóveis, voltaram a balançar suavemente, como se dançassem ao som de uma melodia confidencial. Os trabalhadores, antes jogados no chão como mortos, levantaram-se com renovado vigor, enquanto o barbeiro, tomado por um contentamento quase infantil, viu sua velha máquina voltar à vida.
No quinto minuto, exatamente às quatro e meia, ela entrou na igreja. O sino, que havia mantido a rua em um silêncio sufocante, finalmente tocou. O som profundo e metálico reverberou por toda a vila, marcando o fim da jornada. Os trabalhadores, como que libertados de uma maldição, foram dispensados de seus ofícios. O dia, que parecia perdido, reencontra seu ritmo.
Ela caminhou com a mesma determinação até o altar e sentou-se à frente do padre, enquanto os passarinhos que antes adornavam os fios elétricos agora pousavam no sino da igreja. A missa começou, mas não antes de o padre, com a ponta da luneta, fixar o olhar na figura que acabava de entrar.
Ele resmungou algo que ninguém mais ouviu.
— Que pernas, que bunda, que beleza, que mulher.
Por um instante, seus olhos vagaram pela multidão, tentando recuperar o decoro, mas, inevitavelmente, voltaram a ela. Com uma expressão que oscilava entre admiração e reprovação, ele sussurrou, quase como uma prece desesperada:
— Pelo sinal da santa cruz, livrai-nos dessa diaba.
E assim a missa começou. A rua do barbeiro, antes carregada de cansaço e desalento, voltava ao normal, como se aquele episódio não passasse de um delírio compartilhado. Mas todos que a haviam visto sabiam, no fundo, que aquele dia não seria esquecido tão cedo. Algo na presença daquela mulher parecia ter tocado nas engrenagens do mundo, mesmo que por um breve momento.
II
Cânticos preenchiam o ar, como se as vozes retumbaram de uma dimensão que misturava o tempo. O mundo, talvez, precisasse mais dessas pessoas que cantavam mesmo em momentos de desalento, mas ali, naquela manhã, os cânticos pareciam um sussurro da infinidade. Da rua até o final da praça, as melodias flutuavam, entremeadas de nostalgia e novidade.
A missa de domingo estava prestes a terminar. Os carros na rua da igreja, já agrupados de forma quase geométrica, formavam uma barreira silenciosa entre a praça e a rua principal. O ambiente estava envolto numa quietude expectante, quebrada apenas pelo som discreto de motores que circulavam lentamente, de maneira que os condutores buscassem confirmar se o fluxo humano da missa de sábado havia se repetido.
Lá dentro, o padre lia a última folha dos avisos, sua voz soltando no interior da igreja como um sopro que acariciava os quadros dos santos e as estátuas de barro presente no interior. Ao dar o sinal de despedida, o movimento começou. Primeiro, as crianças. Elas correram para a porta com uma urgência que parecia nascer de uma liberdade recém-descoberta, ultrapassando os velhos, os adultos e os jovens, que seguiam em um ritmo mais contido, como se carregassem o peso de pensamentos que as crianças ainda desconheciam.
No penúltimo banco, ao fundo, Pitxitxu e Nhu Preto Boa Vida permaneciam sentados. Havia algo inabalável na presença deles, igual a pilares da uma igreja que começava a esvaziar-se. Enquanto o interior do templo se despedia das pessoas, os dois pareciam resistir ao movimento, seus olhares fixos em algum ponto invisível, talvez em um diálogo interno ou em uma compreensão que excedia o momento.
Os bancos de madeira começaram a revelar suas formas simples, desgastadas, e o ruído dos passos repercutia como um murmúrio melancólico. As estátuas dos santos, de barro, mantinham seus olhares fixos, como se testemunhasse, impassíveis, a transformação do sagrado para o cotidiano. Os quadros nas paredes, emoldurados por molduras pesadas, aparentavam carregar o peso de crónicas antigas, enquanto se acomodavam novamente no cenário diário de vazio e quietude que tomava conta da igreja durante a semana.
Do lado de fora, o sino da igreja ainda não havia soado, mas seu silêncio tinha um peso próprio. Era um silêncio que conversava com o tempo, suspenso, como se o espaço entre o último cântico e o primeiro passo para fora da igreja fosse um portal para algo que ninguém conseguia nomear.
No fundo, Pitxitxu ergueu lentamente o olhar. Seus pensamentos, mais densos que a brisa matinal, atravessavam o espaço vazio da igreja. Para ele, cada canto e cada sombra carregam sentidos ocultos, histórias que não podiam ser ditas em voz alta, mas que assonavam segredos no interior de sua mente. Ao seu lado, Nhu Preto Boa Vida segurava as mãos firmemente, de quem tentava conter algo que ameaçava transbordar. Havia em seus olhos um reflexo de saudade, misturado a um cansaço que parecia não ter origem.
Quando o sino finalmente tocou, o som atravessou a rua, os carros e a praça, espalhando-se como ondas que vibram nas almas de todos ali presentes. Para muitos, era apenas um sinal, o final de mais uma missa. Mas, para aqueles que prestavam atenção, como Pitxitxu e Nhu Preto, era um lembrete da fragilidade da existência, um rumor que conectava o céu e a terra, o sagrado e o profano, a música e o silêncio.
E assim, a igreja voltou ao seu estado natural, habitada apenas pelos santos de barro e pelas memórias invisíveis que permaneciam presas às suas paredes.
— Que o caminho seja leve, mas firme, como o vento que ajusta as velas. Vá em paz, menina.
A voz do padre repercutiu com um eco que parecia vibrar nas paredes e no coração da jovem. Ela parou, ainda sobre o batente da porta, como se aquelas palavras tivessem prendido seus pés ao chão. O vento que entrava pela porta aberta trouxe consigo um murmúrio que brincava com os cabelos soltos da mulher, dançando em volta de seu rosto igual a um véu invisível.
O sorriso confuso ainda pairava em seus lábios. A abertura entre os dentes, que parecia desafiar qualquer definição comum de beleza, brilhava à luz do final de tarde, transformando-se em algo mais, como se guardasse segredos que nem mesmo ela sabia nomear. Os olhos dos santos, imóveis e eternos, continuavam fixados nela. Santo Amaro, agora em seu novo lugar, parecia inclinar-se ligeiramente, como se quisesse escutar seus pensamentos.
Pitxitxu e Nhu Preto Boa Vida seguiram-na com cuidado. A distância entre eles era suficiente para preservar a ilusão de anonimato, mas próxima o bastante para que seus passos sejam escutados junto aos dela na calçada de basaltos desalinhados. Eles caminhavam quase em uníssono, igual às sombras que não ousavam ultrapassar a presença da dama de salto alto.
Quando ela finalmente cruzou o limiar da igreja, a tarde hesitou. O sol, que começava a mergulhar no horizonte, congelou por um instante, deixando o céu num degradê quase sobrenatural. Era como se o mundo estivesse esperando algo acontecer.
O padre, ainda no altar, observava tudo com olhos que sabiam mais do que diziam. Quando ela virou o rosto uma última vez, os dois se encontraram em um olhar que era ao mesmo tempo um adeus e uma prece.
— Lembre-se, menina, os passos que damos não caminham apenas pela terra, mas também pelos corações que tocamos.
Ela tentou responder, mas as palavras que estavam prestes a saltar de sua boca hesitaram. Era tipo, que cada sílaba carregasse um peso que a impedia de atravessar o ar. Ainda assim, o padre pareceu compreender. Ele fechou os olhos com um leve sorriso, com a certeza do que ela ia dizer. Do lado de fora, o vento voltou a soprar, levantando poeira e pétalas secas que haviam caído das árvores ao redor. O salto agudo de seus sapatos cravou-se mais uma vez nos basaltos, mas ela não parou. Seus passos ritmados acudiam o som pela rua quase vazia, e o silêncio que os acompanhava era tão cheio de significado quanto as palavras não ditas.
Pitxitxu e Nhu Preto continuaram seguindo-a, agora com olhares diferentes. Não era apenas curiosidade ou vigilância. Havia algo reverente em seus gestos, do jeito que pareciam souber que estavam presenciando um momento que jamais seria repetido.
Quando ela desapareceu na curva da estrada, o sino da igreja finalmente soou. Um toque profundo e poderoso que parecia vir não apenas do alto da torre, mas das entranhas da terra. O som espalhou-se como uma onda, despertando as sombras que se alongavam pela praça e iluminando, por um instante, o coração de todos que o escutaram.
O padre fez o sinal da cruz e murmurou para si mesmo:
— Que assim seja.
E, ao longe, mesmo invisível, aparentava que ela havia respondido. — Quero tanto fazer contigo uma loucura...
As palavras do padre, ditas com uma entonação inesperada, assonaram pelo espaço vazio da igreja. Pitxitxu e Nhu Preto Boa Vida, ainda à sombra de um dos bancos do fundo, congelaram no lugar. O olhar de ambos se cruzam num misto de espanto e incredulidade.
— Ele também quer a menina! — sussurrou Pitxitxu, com uma urgência que igual o murmúrio do vento entre as paredes da igreja. — Que tarado esses padres de hoje em dia...
Nhu Preto Boa Vida, mais contido, deu-lhe um leve empurrão no ombro, como quem tenta evitar que as palavras tomem vida própria.
— Para com isso, Pitxitxu. Não sabes o que estás a dizer.
— Tu também queres-me passar à frente? — rebateu Pitxitxu, indignado, mas com um tom que misturava ciúme e brincadeira.
Boa Vida respirou fundo, fixando o olhar na grande porta por onde a mulher acabara de sair. Havia algo na atmosfera que ele não conseguia explicar. Uma eletricidade, uma inquietude, como se o espaço sagrado estivesse carregado de algo que ia além do visível.
— Não estamos em situação de nos concorrermos um contra o outro — respondeu Boa Vida, com uma voz mais grave e séria. — Essa mulher... ela não é para nós, Pitxitxu.
Pitxitxu fez uma careta, mas não retrucou. Algo na fala de Boa Vida o fez pensar. O som do sino ainda pairava no ar, misturando-se ao crepúsculo que começava a cair.
Lá na frente, o padre permaneceu parado, estático, como se nem sequer tivesse consciência do que havia dito. Ou talvez tivesse, mas já não fosse ele mesmo. Seus olhos pareciam vidrados, presos no vazio, enquanto o som do vento atravessava a igreja, trazendo de volta o sussurro distante dos cânticos que ainda soavam pelas ruas.
— Ele está encantado — murmurou Pitxitxu. — Como todos nós...
Boa Vida olhou para ele, surpreso com a seriedade na voz do companheiro. E, pela primeira vez, concordou em silêncio.
Naquele instante, a igreja parecia um organismo vivo, respirando com o vento, pulsando com a energia invisível que aquela mulher deixara para trás. As estátuas dos santos, os bancos vazios, o altar em silêncio, tudo parecia olhar, sentir, e se inclinar em direção à porta por onde ela havia saído.
— Então é isso... — sussurrou Boa Vida, quase para si mesmo. — Ela é como o vento: ninguém a possui, mas todos a sentem.
Pitxitxu inclinou a cabeça, refletindo por um momento. E, sem dizer mais nada, os dois saíram juntos, pisando na penumbra que agora se instalava dentro da igreja, até a luz parecia cansada de brilhar diante daquele mistério.
Enquanto Pitxitxu e Nhu Preto Boa Vida discutiam em voz baixa no fundo da igreja, num sussurro que parecia ser absorvido pelas sombras crescentes, ela permaneceu firme, se o mundo girasse em torno de sua presença, não mudava nada do seu cabelo.
Seu olhar, calmo e direto, fixou-se no padre, que por sua vez parecia dividido entre o peso de sua batina e a leveza dos pensamentos que sua mente insistia em construir. Ela sabia o que causava nos homens. Era uma certeza que carregava desde cedo, como quem descobre uma arma poderosa e aprende a manejá-la com precisão.
Metade deusa, metade demónio, sua silhueta evidenciava condensar toda a força e a fragilidade do mundo. O modo como seus glúteos se moviam em perfeita sincronia, as pernas longas que aparentavam mais imponentes do que as colunas da própria igreja, e aquele olhar... oh,
aquele olhar que não apenas atravessava, mas esculpia desejos no íntimo de quem ousasse enfrentá-lo.
Se ao menos os basaltos tivessem vida, pensava ela. Se tivessem olhos e sentimentos, as estradas seriam menos solitárias. Cada passo seu, cada ondular de quadris era como uma bênção que renovava até os seres inanimados. Até as pedras, eternas em seu silêncio e imobilidade, pareceriam vivas sob a magia que ela emanava.
O padre, ainda preso ao altar, sentia o peso do instante como um fardo insuportável. Sua garganta estava seca, e o coração parecia desafiar a liturgia, batendo de forma desordenada. Então ela falou, com uma voz doce e ao mesmo tempo carregada de uma força que parecia fixa além do espaço físico:
— Senhor padre, o que deseja de mim? — perguntou, e a simplicidade da frase tinha o peso de uma prece. — Se está ao nosso alcance, tudo podemos fazer.
Aquelas palavras, ditas com tanta serenidade, pareciam despir o padre de sua autoridade, de sua batina, de sua humanidade. Ele hesitou, lutando contra algo invisível, algo que ela sabia estar ali, porque o criara, o alimentara com cada movimento seu.
— Desejo... — começou ele, mas a voz fraquejou.
Pitxitxu e Boa Vida, atentos como cães farejando perigo, trocaram olhares no fundo da igreja. O que sairia da boca daquele homem? Seria a confissão de um desejo que todos, no fundo, compartilhavam, mas que ninguém ousava verbalizar?
— Desejo... — repetiu o padre, agora olhando para o chão, como se buscasse ali uma redenção que sabia ser impossível. — Que encontres... paz.
Ela sorriu. Um sorriso enigmático, que parecia misturar gratidão e triunfo. Seus lábios se abriram novamente, mas dessa vez não para falar. Apenas para deixar que o silêncio ocupasse o espaço entre eles, um silêncio que dizia mais do que qualquer palavra poderia dizer.
Ao fundo, Pitxitxu murmurou para Boa Vida:
— Paz? Ele diz paz, mas deseja é guerra...
Boa Vida não respondeu. Apenas continuou observando a cena, como quem testemunha algo sagrado e profano ao mesmo tempo.
Ela, por fim, virou-se. Seus saltos altos pupam pelas pedras do chão, e o som parecia carregar consigo uma promessa, um enigma, ou talvez uma maldição.
O padre permaneceu parado, igual a uma estátua, enquanto ela desaparecia pela porta da igreja. As estátuas dos santos, ainda imóveis, pareciam ter ganhado um brilho diferente nos olhos, quão, se até elas fossem incapazes de permanecer alheias à sua presença.
O padre sorriu satisfeito, um sorriso que parecia carregar o peso de séculos de desejo reprimido e redenção frustrada. Seus passos eram lentos, mas firmes, enquanto se aproximava dela. A distância entre os dois foi diminuindo até que seus rostos quase se tocassem, e ela, sentindo o calor de sua presença, respirava cada vez mais depressa.
Cruzaram os olhares, e naquele instante parecia que o mundo havia parado. Não havia mais igreja, nem santos, nem céu ou inferno, apenas os dois. Ele levantou as mãos com uma suavidade perturbadora, tocando levemente o contorno de seu rosto como se estivesse prestes a quebrar algo precioso. Então, pronunciou uma única palavra, baixa, mas carregada de uma força esmagadora:
— Exatamente.
Ela fechou os olhos de imediato, como quem aceita um destino inescapável, como uma rezadora de terços em casas de mortos, o ar ao redor parecia se encolher, tornando-se pesado, denso, como se a igreja inteira prendesse a respiração, então o barulho habitual da sala desapareceu. O ranger dos bancos, o sussurro das sombras nos cantos, até mesmo o vento que costumava cantarolar pelas janelas fechadas havia cessado. O silêncio era infernal, cada santo, morto e sacrossanto, observasse a cena com olhos imóveis, mas atentos.
Santo Amaro, que recém havia sido movido de lugar, parecia espreitar os dois, forçado a testemunhar aquele momento. Imóvel, de pedra e barro, mas com uma presença tão forte quanto a de uma entidade viva. Talvez estivesse julgando, ou talvez estivesse simplesmente resignado, pois, afinal, até os santos sabem que há coisas que nem a eternidade pode impedir.
Os dois, tão próximos, pareciam estar em um mundo próprio, onde o sagrado e o profano se entrelaçavam em uma dança perigosa. Ele sentiu o cheiro dela, uma mistura de perfume e calor humano, algo ao mesmo tempo terreno e celestial. Ela, por sua vez, sentia o peso de sua presença, tão denso quanto uma confissão que jamais será feita.
O padre hesitou. Por um breve momento, parecia estar preso entre o papel que lhe fora imposto e o homem que ainda existia por trás da batina. Seus dedos tremiam ao tocar a linha do queixo dela, mas não recuaram.
E então, como se uma força invisível rompesse o encanto, ela abriu os olhos. No instante em que o fez, algo na igreja mudou. O silêncio foi quebrado por um leve ranger vindo do fundo da sala. Não era Pitxitxu, não era Boa Vida. Era algo mais.
Ela deu um passo para trás, como quem recupera o controle após um momento de vertigem. Santo Amaro, desta vez, mesmo imóvel, parecia observá-los com uma reprovação ou de tristeza, difícil dizer.
— Senhor padre... — disse ela, sua voz agora firme, mas carregada de uma estranha serenidade. — Exatamente o quê?
O padre não respondeu de imediato. Seus lábios se moveram, mas nenhum som saiu. Ele parecia engasgado, não com palavras, mas com o peso do que não podia dizer.
Ela sorriu. Um sorriso enigmático, que deixava dúvidas sobre quem, afinal, estava no controle. Virou-se e começou a caminhar em direção à porta. Seus saltos outra vez se fizeram ouvir pela igreja, como marteladas no coração do padre, que permaneceu parado, com os braços ainda erguidos, sem saber se rezava ou desistia. E naquele instante, o vento voltou a soprar, trazendo consigo o som dos sinos ao longe. Mas desta vez, o som parecia diferente, como se a própria igreja chorasse por algo perdido para sempre.
Enquanto o padre continuava a vasculhar sua bolsa com uma expressão cada vez mais desesperada, ela, sentindo o tempo escorrer pelos dedos, decidiu quebrar o silêncio, abrindo os olhos com uma calma desconcertante. A luz que entrava pelas janelas da igreja iluminava seu rosto de maneira peculiar, conferindo-lhe uma aura quase etérea.
— Senhor padre, vou-me embora. Tenho uma guerra com os basaltos para fazer. — Sua voz era tranquila, como se a luta fosse apenas mais uma parte do seu cotidiano.
O padre, ainda buscando freneticamente por algo que não conseguia encontrar, parou por um instante. a carga de suas palavras parecia não se alinhar com a gravidade da situação, mas ele não teve tempo para ponderar.
— Como assim? — Perguntou ele, a confusão estampada no rosto, enquanto suas mãos continuavam a revirar a bolsa, com a esperança de encontrar algo que o libertasse daquela inquietação.
Ela o olhou com um sorriso ligeiramente irônico, quase como se soubesse exatamente o que ele iria dizer.
— Sim, basalto, senhor.
O padre parecia ainda mais perdido, as palavras tropeçando na boca antes de sair.
— O que é isso? Uma mulher do seu porte não pode permitir que homem algum lhe desrespeite, e muito menos uma guerra entre vocês.
Ela o observou atentamente, como se pesasse cada palavra do padre com a mesma precisão que escolhia seus passos.
— A estrada. As pedras da cidade. Elas brigam com o meu salto alto e me obrigam a andar como aquelas bonecas de passarela. Também com essa arquitetura de Notre-Dame que esses sapatos suportam. — Ela disse com um tom entre o sério e o cínico, sua expressão desafiando o padre a questionar mais.
Antes de ele poder reagir, ela fez uma leve pausa, como se estivesse se preparando para lançar uma pergunta, mas algo a fez hesitar. O padre, por sua vez, mais perdido que antes, tornou a perguntar:
— Como assim?
Ela olhou-o com um olhar penetrante, mas para fazer com que ele fosse mais do que um simples espectador. Seus olhos fixaram os dele por um momento longo, quase carregado de expectativas. Ela não esperou pela resposta, movendo-se com a leveza de quem já sabia que a batalha estava vencida, apenas aguardando a queda do próximo movimento, o próximo passo do jogo. Ela sabia que a guerra não era contra o padre, mas contra algo maior. Contra a cidade. Contra as pedras que formavam o labirinto de seu destino.
Assim, antes que o padre pudesse devolver uma nova questão ou resposta, ela se virou e seguiu em direção à porta, seus saltos fazendo um eco cada vez mais distante enquanto se afastava, como um lembrete silencioso de que, por mais que tentassem, as pedras e os homens jamais poderiam controlá-la.
A cena ficou marcada pelo som abafado das vozes dos dois, que lamentavam a situação com uma mistura de desconfiança e cumplicidade. As palavras trocadas entre boa vida e pitxitxu pareciam enredadas em um jogo de verdades veladas, onde ambos se apoiavam nas falhas e limitações do outro, criando uma rede de apoio e desespero ao mesmo tempo. A tensão do momento, o peso das palavras do padre e as expectativas que pairavam no ar eram apenas mais um reflexo da própria luta interna daqueles homens, que, como a cidade e as pedras que os cercavam, pareciam eternamente presos a uma condição que não podiam controlar.
Pitxitxu, com a sua visão turvada pela cegueira, parecia compreender a dinâmica humana de uma maneira única, como alguém que sente as vibrações de um ambiente sem ver suas cores. Ele tocava nas palavras com uma sensibilidade quase sobrenatural, buscando significado em cada gesto, em cada movimento.
Boa vida, com a sua própria deficiência, tinha uma visão crua da realidade, sem as ilusões da beleza ou da perfeição. Ele via as pessoas pela ação, pela intenção, não pelos olhos. E, naquele momento, ele compreendia a complexidade das relações humanas mais do que qualquer outra coisa, o que o fazia se sentir parte da engrenagem que movia a cidade.
— Não é fácil, eu sei — respondeu boa vida, a voz carregada de uma sabedoria amarga. — O que somos, o que temos, é o que somos, e nós não escolhemos, apenas lidamos com o que a vida nos deu. Você tem sua visão única, eu tenho meus próprios demônios.
Pitxitxu sorriu, Ele não precisava de olhos para enxergar a verdade que estava diante deles, mas a falta de visão física deixava espaço para que o restante do mundo se desdobrasse diante dele em formas e significados que os outros talvez não percebessem.
— Somos, como você disse, um reflexo um do outro, uma imagem quebrada da mesma essência. Mas nem sempre a guerra é perdida, talvez seja só a visão que nos engana. — Pitxitxu completou com um ar de sabedoria, ainda que imperfeita. Ele sabia que, de alguma forma, essa união de defeitos e limitações era o que os mantinha vivos, o que os fazia continuar a existir, mesmo no vazio das ruas de basalto e das pedras silenciosas.
Boa vida deu um suspiro profundo e riu, na simplicidade de um entendimento mútuo.
— E quem diria que dois pedaços de carne e osso, cheios de falhas, conseguiram entender tudo isso. Acho que você tem razão, a visão pode enganar, mas o que temos aqui — ele fez um gesto com a mão, abrangendo a rua e a cidade ao redor — isso é real.
Os dois se afastaram lentamente, cada um com seus próprios pensamentos, mas de alguma forma, mais próximos do que nunca, cada um alimentando-se das falhas do outro.
— Completamos um ao outro, disse o Boa Vida, enquanto cutucava o Pitxitxu, forçando sua atenção para o estranho momento.
A jovem fitava o padre, com um misto de desconfiança e curiosidade que, por um instante, parecia diluir a linha tênue entre o espiritual e o profano.
— O que é que queres de mim, padre? — Perguntou ela, sua voz trêmula, como se, no fundo, já soubesse a resposta. No entanto, a inquietação em seu tom denunciava uma fissura emocional, um atrito
que rasgava sua tranquilidade. Ela se alterava, como se o ar em volta a sufocasse.
Ele apenas apontou para suas pernas, mas a sugestão era clara. O padre o fez com serenidade, como se fosse um ritual pré-determinado. Ela não desviou o olhar.
— Queres isso? — Indagou, sua voz afiada, de modo que se desafiasse a moralidade do momento.
Ela, em um impulso, estendeu os braços, buscando nele algum tipo de resposta, de amparo. Ele correspondeu ao gesto, mas o toque que se seguiu era mais pesado do que um abraço: parecia a união de dois mundos que se aproximavam, enquanto o ambiente se tornava irrespirável, estranho.
— E agora, padre? — Perguntou ela, as palavras como um suspiro perdido entre o desejo e o medo. O padre, sem pressa, levou uma mão à bolsa, retirando algo que parecia comum, mas o movimento de rasgar o plástico que a envolvia fez o tempo se distender.
— Mas... um padre pode fazer isso? — Sua pergunta flutuava na atmosfera, entre dúvida e revolta, como uma onda que toca uma rocha e logo se desfaz.
— Sim, pode. É absolutamente normal, atualmente — disse ele com uma calma que desafiava o entendimento. O tempo parecia amolecer, derreter, e a sala tornava-se uma extensão do seu próprio ser.
Ele parou por um momento, o ar denso entre eles, antes de finalmente completar a tarefa. Quando terminou de rasgar o plástico, olhou-a nos olhos com uma expressão quase maternal, como se tivesse oferecido a ela o conhecimento mais profundo, aquele que não se aprende, mas se experimenta.
Ela não podia acreditar. E ao não acreditar, a dúvida se enraizava mais fundo, tornando-se uma sombra que se estendia sobre os seus pensamentos, como uma névoa impenetrável.
O padre, com os olhos agora completamente dilatados pela ação, sussurrou. A realidade e a fantasia colidiam dentro dela, deixando-a suspensa no limbo da incredulidade.
— Completamos um ao outro, disse o Boa Vida, enquanto cutucava o Pitxitxu, forçando sua atenção para o estranho momento.
—Novamente, O que é que queres de mim, padre? — Perguntou ela, sua voz trêmula, como se, no fundo, já soubesse a resposta.
Ele apenas apontou para suas pernas, mas a sugestão era clara. O padre o fez com serenidade.
— Queres isso? — Indagou, sua voz afiada.
O padre observou calmamente. Seu rosto não expressava dúvida, mas uma concentração densa. As mãos da jovem se moveram de maneira involuntária, esticando os cabelos em um gesto que parecia se dar em algum plano além da realidade. O padre, com movimentos meticulosos, sorriu suavemente.
Ela, em um impulso, estendeu os braços, buscando nele algum tipo de resposta, de amparo. Ele correspondeu ao gesto, mas o toque que se seguiu era mais pesado do que um abraço:
— E agora, padre? — Perguntou ela, as palavras como um suspiro perdido entre o desejo e o medo. O padre, sem pressa, levou uma mão à bolsa, retirando algo que parecia comum, mas o movimento de rasgar o plástico que a envolvia fez o tempo se distender. O som do plástico, ao ser rasgado, repercutia como se estivessem descascando as camadas de algo profundamente guardado.
— Mas... um padre pode fazer isso? — Sua pergunta flutuava na atmosfera, entre dúvida e revolta.
— Sim, pode. É absolutamente normal, atualmente — disse ele com uma calma que desafiava o entendimento. Ele parou por um momento, o ar denso entre eles, antes de finalmente completar a tarefa. Quando terminou de rasgar o plástico, olhou-a nos olhos com uma expressão quase maternal, aquele que não se aprende, mas se experimenta.
Ela não podia acreditar. E ao não acreditar, a dúvida se enraizava mais fundo, tornando-se uma sombra que se estendia sobre os seus pensamentos, como uma névoa impenetrável.
O padre, com os olhos agora completamente dilatados pela ação, sussurrou, mas sua voz era como um vento cortante que invadia seus ouvidos. A realidade e a fantasia colidiam dentro dela, deixando-a suspensa no limbo da incredulidade. Gemendo, gemendo
Ela, em um impulso, estendeu os braços, buscando nele algum tipo de resposta, de amparo. Ele correspondeu ao gesto, mas o toque que se seguiu era mais pesado do que um abraço:
— E agora, padre? — Perguntou ela, as palavras como um suspiro perdido entre o desejo e o medo. O padre, sem pressa, levou uma mão à bolsa, retirando algo que parecia comum, mas o movimento de rasgar o plástico que a envolvia fez o tempo se distender. O som do plástico, ao ser rasgado, repercutia como se estivessem descascando as camadas de algo profundamente guardado.
— Mas... um padre pode fazer isso? — Sua pergunta flutuava na atmosfera, entre dúvida e revolta.
— Sim, pode. É absolutamente normal, atualmente — disse ele com uma calma que desafiava o entendimento. Ele parou por um momento, o ar denso entre eles, antes de finalmente completar a tarefa. Quando terminou de rasgar o plástico, olhou-a nos olhos com uma expressão quase maternal, aquele que não se aprende, mas se experimenta.
Ela não podia acreditar. E ao não acreditar, a dúvida se enraizava mais fundo, tornando-se uma sombra que se estendia sobre os seus pensamentos, como uma névoa impenetrável.
O padre, com os olhos agora completamente dilatados pela ação, sussurrou, mas sua voz era como um vento cortante que invadia seus ouvidos. A realidade e a fantasia colidiam dentro dela, deixando-a suspensa no limbo da incredulidade. Gemendo, gemendo
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