O Tarrafal precisa de atenção social.
Por: Mário Loff
O melhor de regressar à terra é a certeza de que os santos da casa não fazem milagres. Estão demasiado habituados a nós, e nós a eles. É como disse Saramago: "É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não sairmos de nós." É um daqueles pensamentos que nos apanham de frente, como um vento contrário quando achamos que já dominamos o caminho.
Nestes dias, tenho caminhado pelos recantos que fizeram a minha infância no Tarrafal. Há sempre uma história que se cola às pedras das ruas, difícil de ver para parte detrás da minha casa para não ouvir Nha Karlota ou debate numas línguas estranhas entre Djunga ou Kiminta e Djonsa. O eco de uma época feliz e vivamente cultural, uma memória que se recusa a ser enterrada. Era o tempo dos bocudos, dos gritos quando começa as canções de Livity, e da guerra fria entre os bares que punham Djédjé de um lado e do outro respondia-se com Chandinhu Dédé. A música era um campo de batalha, e Djédjé era o batedor de qualidade. Hoje, tudo se tornou um ruído de fundo, uma amálgama de sons indistintos que já não desafiam nem provocam.
Quem, como eu, já atravessou o caminho da enta, já perdeu o fio à meada dos miúdos que agora dominam as ruas. Chamam-lhes "os meninos de dois mil", como se fossem um fenómeno estranho, mas a verdade é que sempre houve quem olhasse os mais novos como estrangeiros na sua própria terra. No meu tempo de liceu, ainda achávamos que o mundo ia acabar. Mas não acabou. O que acabou foi a paciência do ministro que teve de se explicar porque um dos meus colegas resolveu testar os limites da paternidade e fez seis filhos antes dos vinte. Os filhos desses filhos já andam por aí, e os pais e os avós já partiram. As mães, ocupadas com a vida, deixam-nos em casa ao deus-dará. A desestruturação familiar aprofundou-se. Mas a reorganização familiar se estabeleceu para além do atlântico, vamos konpondu aos poucos o mundo sonhado.
Numa dessas casas, onde vive uma daquelas raparigas da minha época, ouvi uma voz funda chamar-me. Chamou-me com receio, com medo de ser vista pelos vizinhos, que, segundo ela, a vigiam. No Tarrafal, os olhos dos outros são a nossa segunda pele. Se fores vista com as pessoas erradas, cortam-te os benefícios. Há uma vigilância invisível que decide quem pode sobreviver e como.
Entrei na casa, a convite dela. Primeiro, lembrámos os tempos do liceu, depois as traquinices, depois as filhas que chegaram depois. O abandono da escola. A fuga de casa por ordem do pai, que não sabia instruir, mas sabia impor. Os primeiros desafios fora de casa. A chegada da primeira filha. O companheiro que desapareceu antes do primeiro mês. A necessidade de vender peixe antes do bico da criança secar. "Tive que ir", diz ela. Agora está contente, as dificuldades passaram. Ou assim gosta de acreditar.
Pergunto-lhe pelos dias de hoje. Responde com um desabafo seco:
— Sabes da filha da Minga? Aquela menina, como tantas outras neste bairro, anda a ser aliciada e enganada por homens de cinquenta e por jovens de vinte. Com a situação da família e a educação que recebeu, foi usada desde os catorze anos. Aos dezassete teve um filho. Teve de abandonar a escola para ir trabalhar numa loja dos Chinesses.
— E o pai? Estuda?
Ela ri, amarga.
— Se estudasse, era bom. O pai tem sessenta anos.
Fiquei a pensar. No silêncio profundo do Tarrafal. Na quantidade de homens e mulheres que vão à missa. Sabem destas histórias todas e calam-se. Sentam-se nos bancos, fazem vénias e dizem ámen a uma autoridade incompetente, embrulhada numa ditadura de consenso, num sítio onde o debate acabou e a cultura se reside a aposta na música e deambulações pelas paroquias nas desvirtuações dos único e real de uma capelania até a romaria mais grande que movimenta a cidade, enquanto essa persistência com tons de diazepam sopra pelas ideias bem elaboradas, uma coisas nascida anda por aqui como se a própria liberdade tivesse ido tomar banho no mar do Presidente e nunca mais tivesse voltado.
O Tarrafal precisa de atenção social. Não é a fotografia que está bonita. É o fotógrafo que foge da sujidade. E foge porque a conhece bem. Foi ele que andou a cagar por lá.
E cheira. Alegremente.
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