quantas vezes já se vendeu o nome de Tarrafal? Provavelmente mais vezes do que o de Amílcar Cabral.
– Você, cale-se e deixe-me falar. Eu tenho homem e você não.
Maria José largou a frase como quem atira um trunfo na mesa do restaurante da Rosa. Lulucha não se perturbou – sorriu, inclinou-se ligeiramente para a frente e, com a serenidade de quem já viu muita coisa, respondeu-me com um conselho:
– Apara as tuas pontas todos os dias, mas não te compares. Treina-te em ser o maior – ou talvez, apenas, em ser o apara-dor.
Maria José soltou uma gargalhada que parecia não ter fim e rematou, com a certeza de quem já viveu séculos:
– É por isso que ainda hoje sonhas com o amor da tua vida.
Há amizades que duram mais do que a história oficial das cidades. Esta era uma delas – sincera, impiedosa, sem espaço para delicadezas inúteis. Mas já aviso: a conversa destas duas professoras reformadas não é para ouvidos imberbes. É coisa para maiores de idade – e não falo apenas de anos.
Porque é isso o Tarrafal: uma parte está sempre pronta a falar, a ensinar-nos qualquer coisa, e a outra parte observa em silêncio, astuta, cheia de vontade de dizer algo que valha a pena. Mas desiste. Desiste como quem foi treinado desde o berço a calar elogios, como se qualquer reconhecimento fosse suspeito, um vírus de fraqueza, uma pregação oculta que fere os sentimentos e alimenta o orgulho besta e repetitivo.
Tarrafal é um lugar pronto para tudo.
Hoje, pela manhã, conversava com dois amigos e, entre um café e outro, surgiram ideias sobre este pedaço de chão. Duas ideias, duas observações – ambas velhas conhecidas. Há coisas que todos sabem, mas ninguém ousa legalizar. Talvez por isso continuem a existir há mais de um século, arrastando-se pela cidade como sombras inevitáveis.
O contrabando do se#o, selvagem e sem contrato.
A venda das ideias e das suas reproduções.
Aqui, vende-se tudo.
Enquanto escrevo estas palavras, à frente da tão falada e mal-aventurada avenida pedonal – ainda em obras, sempre em obras, malandras obras –, chega-me a novidade da publicação de um livro sobre o Tarrafal. Fotografia e texto, a duas mãos dadas entre Gabriel Costa e mais um autor que é pedaço da nossa desta terra e desta história que é capturado em papel.
O livro estará à venda em breve, dizem-me. Mas pergunto-me: quantas vezes já se vendeu o nome de Tarrafal? Provavelmente mais vezes do que o de Amílcar Cabral. Merecia um estudo. Talvez mais uma venda de ideias, mas um estudo que incluísse tudo – as façanhas dos poetas e escritores, os cânticos, as orações de um sírio perdido no seu norte, os sussurros do nome Tarrafal em baixo-relevo para evitar a concorrência com os sapos que transformam as vilas em artérias pulsantes no verão.
O Tarrafal, afinal, não se esgota.
É um nome contrabandeado, um nome que cheira a isolamento, a grito de Mona Bedju, ao coaxar dos grilos falantes que também cochicham menos este nome, para não competirem com os outros ruídos da vila. É o nome que sacode em modo ondas nas rádios noturnos da praça, nas conversas que correm sem pressa. Nas modas das moças que mudam tão rápido que se tornam moda apenas por um instante. E é o nome que, por fim, me traz de volta a Maria José e a Lulucha. O Tarrafal, nestes dias, tem sido um infinito contra um finito ponto final.
Ou talvez, apenas, um afinal.
Muito Bom , esta pequena cronica me reflete a dias em que vi sentada com essas duas senhora. foi bem aproveitada e ponto final
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