é crime, quando um professor faz da sua aluna sua namorada, amante, depois esposa?
Mário Loff
Nas cercaduras distantes de Quebra Canela, onde o mar abraça o horizonte, o som melódico da praia da Gamboa dançava até ao café da Shell que se situa mais perto, ansioso por ser ouvido. Lá, onde a brisa salgada se entrelaçava com o aroma reconfortante do café, um grupo de colegas brindava com chávenas de barro, esculpidas pelas mãos sábias das senhoras anciãs de Trás de Monte, em Tarrafal. Diante do espelho, contemplavam-se, buscando ainda a altivez nos traços. Haviam perdido tudo, outrora, em devaneios caros aos olhos simples, mas agora aprendiam a saborear a vida com modéstia, como quem sorve de um canudo barato.
Na véspera, enfrentaram a ressaca de uma longa caminhada do outro lado da ilha, onde levaram as filhas e deixaram as mães em casa. A bebedeira de sexta-feira não fora benéfica para a cabeça e o estômago, mas, lá pelas horas vagas do desentendimento do mundo, algo expendido chegava para pôr todo o tino em ordem e caminhar no dia a dia das coisas.
Num canto do café, um rapaz encostado na mesa levantava a cara, observando a agitação ao seu redor. Virou a cabeça e os seus olhos encontraram os de uma menina sentada à sua frente. Ela mordia os lábios e engolia a cerveja, os olhos brilhando de desejo enquanto fixavam-se na boca do rapaz. Ela não olhava só a boca, olhava um homem vazio, possuído de todas as teorias prontas, e a sua face só cheirava a estrondo frio. Por vezes, reclamava que ele era o país, ora ausente, ora de passante, confuso no tempo que deveria ser presente.
A sua amiga, sentada noutra mesa, acenou para a empregada de mesa, pedindo mais dois cálices de ginjinha. Provavelmente, já tinha notado a química entre o casal durante a caminhada de há uma semana. Faz-se muito calor nas caminhadas; o rapaz queria mais caminhadas, desta vez pela vida inteira, mas a mulher é sempre mais calculista, analista, cuidadosa. O homem decide mais rápido e conforta-se com pouco, até que ela coloca a ciência da ambição a trabalhar. Ali, sim, ele torna-se tudo na vida, até se transformar num super-homem sem nada por dentro e tudo à volta. E quando se vê a foto dos anos que passam, só se vê teias de aranha sem a sua presença.
A rapariga nova, de um metro e sessenta, sentada no café da Shell, usava calças apertadas. Os seus lábios, pintados de vermelho vivo, contrastavam com a sua postura nervosa à frente do rapaz. Ele tremia por dentro, desejando tudo de uma só vez, e os que estavam à volta percebiam que, se ninguém estivesse ali, aquele encontro seria algo para além da Terra do Nunca.
Os reformados cativos, que observavam de longe com a sabedoria de quem já viveu muito, confidenciavam entre si, suas vozes sussurrando como o lamento do vento nos ramos das árvores antigas:
– Ela é linda, meu caro – murmuravam, sentindo o peso dos anos a pesar sobre seus ombros cansados.
Esses homens, que dariam tudo por um vislumbre de amor nos cantos escuros de algum dormitório noturno, seus corpos marcados pelo tempo e pelo grogue fédi, carregavam consigo recordações doces, aprisionadas nas teias da memória. Compreendiam, como poucos, o valor da paixão e os sacrifícios que ela exigia.
– Hoje, que tenho tudo caído, daria tudo para protestar contra e a favor do amor – lamentava-se um deles, os olhos turvos refletindo um passado distante.
O outro lançou-lhe um olhar cansado:
– O amor já é tarde para nós. Nossas companheiras já não estão aqui por causa das nossas afrontas. Quando nos encontrámos na prisão, protegemo-nos. Talvez isso até se chame amor, mas estamos condenados a viver esta dura realidade de homens rudes que resolveu se sentir um e outro.
– Então, vamos torcer por ela – respondeu o outro, com uma ponta de esperança nas palavras.
– Ela lembra minha filha, que foi tirada de casa pelo seu professor ainda na escola secundaria baixa. Isso não me magoou, pois não tinha nada para oferecer – confessou o primeiro, com um suspiro lastimoso.
– É crime isso! – exclamou o outro, indignado.
– E somos nós que vamos dizer que é crime, quando um professor faz da sua aluna sua namorada, amante, depois esposa? Olha para nós, acabados de sair da prisão – retrucou o segundo, com um tom amargo.
– Falando assim, magoas-me – admitiu o outro, abaixando o olhar.
– Às vezes, um país nasce magoado, e todos os seus homens carregam essa mágoa por gerações – refletiu o primeiro, com uma tristeza profunda.
– Há de aparecer alguém que cortará essa mágoa e castigo – murmurou o outro, com uma fé tênue, mas perseverante.
Ele, ao terminar de falar, apontou o dedo para o casal presente que estavam a observar e se puseram em silêncio.
A menina, apesar da sua beleza, já não era virgem. No entanto, nenhum objeto mal comportado a tinha manchado; esses, por vezes, mal-humorados, não tinham tido a sorte de a conhecer.
O mar próximo convidava ao alívio dos suores e à limpeza das mentes cheias de malvadeza. Um único gesto de carinho poderia transformar tudo.
– É desejo, meu amigo – disse a menina da cerveja. Ela continuou, olhando para o casal: – Eu invejo esses meninos que exalam querer. Bom mesmo é saber que, depois de tudo, ainda querem ver-se. A moça é bela, merece ser levada à Terra do Nunca. Nunca se pode deixar de amar uma moça como aquela. Nunca.
Decidimos sair da nossa mesa e sentar-nos mais perto. Ouvimos o rapaz, enérgico, a apalpar-lhe pelas palavras. A menina da cerveja observava e lia os lábios do rapaz, enquanto eu traduzia em gestos o que ele dizia à moça de lábios vermelhos e cerveja na mão.
Ela estava ansiosa para perceber, e eu, ansioso para lhe dizer o que sempre quis dizer. Ouvi o rapaz sussurrar algo que fez a menina reagir. De repente, a palavra foi certeira. A moça de lábios vermelhos e cerveja agarrou o rapaz e beijou-o com tanta força, pudor e desejo, como se o sol nunca enfrentasse as nuvens. A procura de algo profundo e sincero uniu-os, enquanto a noite se despedia dos homens antes prisioneiros pela manhã. E nós, os mortais, éramos vítimas e simples invejosos da situação do casal no café da Shell de Chã de Areia.
A menina à minha frente fez-me um sinal, acenando para eu dizer o que o rapaz tinha dito à miúda. Preparei as palavras como uma arma com uma flor na boca, igual aos rapazes de abril antigo na Praça da República, lá nas terras tugas. Respirei fundo e, finalmente, o casal que se beijava apaixonadamente foi-se embora. Então, decidi falar com a menina à minha frente.
— Ele disse que o amor verdadeiro é como o mar que nos rodeia – comecei, sentindo a poesia invadir-me. — Disse que, tal como a brisa do mar limpa as nossas almas, o amor purifica os nossos corações. Disse que, com ela, sentia-se vivo, como se cada beijo fosse uma onda quebrando na areia, trazendo a promessa de eternidade.
A menina sorriu, os olhos brilhando de emoção. E, naquele momento, percebi que, embora invejássemos o casal, o verdadeiro desejo de todos nós era encontrar esse tipo de amor, puro e transformador. Um amor que, como o mar, nunca deixa de nos surpreender com a sua vastidão e profundidade.
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