A nossa viagem resultou num livro escrito por mim sobre a ilha, especialmente sobre Porto Novo e suas gentes, pronto para ser impresso.
Retratos da Vida em Porto Novo
Já estive em Porto Novo, na ilha de Santo Antão, e a minha primeira impressão foi de que as coisas ali são feitas com uma certa ciência. É uma cidade limpa e bonita, com pessoas educadas e vibrantes quando querem, mas ainda é uma cidade em construção, um mosaico de sonhos e esperanças que se erguem contra o pano de fundo das majestosas montanhas e dos profundos vales. As ruas, antigas e outras atuais, embora algumas inacabadas, brilham sob o sol do Atlântico, e a brisa que vem do mar parece sussurrar histórias antigas às pedras das calçadas. A língua afiada de Manuel Lopes, que descreveu com o seu finíssimo olhar a ilha de São Vicente, é evocada, esta que se banha ao longe, mas tão perto dos olhos e do peito de quem chega, especialmente durante as festividades locais.
A estátua da mulher acenando, simbolizando a imigração do homem cabo-verdiano, é um farol de serenidade e força situado nas imediações do porto. Ela acena para aqueles que chegam de São Vicente e para os que partem, seja para longe ou para os confins íntimos de Santo Antão. Este aceno, simples mas cheio de significado, é um gesto de boas-vindas e despedida, um convite a mergulhar na essência desta terra de contrastes.
Quando estivemos por lá, levámos ideias, literatura e livros, como sementes lançadas ao vento, para fazer parte de uma iniciativa corajosa que só podia ser empreendida por jovens tocados pela varinha mágica da loucura. Um poeta uma vez disse que não é toda a gente que é bafejada pela loucura, e outro afirmou que talvez os loucos estejam no lugar errado e os normais deveriam estar nos espaços destinados aos malucos. Assim, com a ousadia própria da juventude, trouxemos às ruas de Porto Novo a poesia e a literatura, transformando-as em palcos de expressão e criatividade.
A Associação Literária de Santo Antão (ALSA) tem desempenhado um papel crucial na dignificação da literatura local e nacional, com figuras de proa como Veríssimo, Gomes e Pio. Estes nomes são sinónimos de resistência cultural, de uma luta constante para manter vivas as tradições e as histórias das gentes de Santo Antão.
A nossa viagem resultou num livro escrito por mim sobre a ilha, especialmente sobre Porto Novo e suas gentes, pronto para ser impresso. Os livros derrubam a ignorância quando conseguimos virar a página; este objeto mágico derruba muros. Em Porto Novo, vivemos as melhores e mais inesquecíveis alegrias, contando "mentiras com estrofes e versos" em declamações, porque, como dizia o poeta, a declamação do poema é mentir com autorização. Faz bem, e é permitido fazê-lo para salvar a verdade. Nesses dias, o tambor volta à cidade para levantar poesias, homens calmos e bizarros que se tornaram bois velhos, mas também as poeiras já deitadas sob a paz de algum bom deus das montanhas tontas e gigantes.
É tempo de fazer das varandas um lugar de aceno, enquanto se assiste à correria da multidão acompanhando os tamboreiros, as conchas e as mãos que geometricizam tudo no mesmo ritmo. Tum tum, começa no coração e termina no tambor, traduzindo melodias e emoções nas almas das pessoas.
Na boca do ancião mais antigo e fiel da cidade, e até do mais jovem que chega do interior, a fé e as tradições encontram-se e renovam-se, tornando Santo António um santo cada vez mais resistente e inspirador na propagação do ato de fé. As noites em Porto Novo são um mistério em si, cheias de estrelas que parecem contar segredos aos ventos que vêm do mar. Se a noite cair com sinceridade, mesmo que a idade desta festa atinja a eternidade, os portonovenses serão sempre aqueles que olham em frente, na terra do Zé Rodinha.
Aproveito para vos contar um pequeno conto escrito em Santo Antão, enquanto viajávamos de barco de volta para São Vicente e, depois, para a ilha de Santiago.
Porto Novo, com o seu clima temperado pelos ventos alísios, as suas paisagens esculpidas pela geologia caprichosa e as suas gentes de coração aberto, é um lugar onde o passado e o futuro se encontram numa dança eterna. Aqui, a simplicidade da vida rural é celebrada todos os dias, mostrando que, mesmo em tempos difíceis, a fé, o amor e a tradição são as heranças mais preciosas que se pode deixar.
Na vila, o dia começa com a melodia do amanhecer, onde os primeiros raios de sol iluminam as montanhas verdejantes e os vales profundos. As mulheres, como Titina, preparam o café nas velhas panelas de barro, e o aroma do café moído no pilão de madeira invade as casas, convidando todos para o pequeno-almoço. As bacias de alumínio, brilhando ao sol nascente, estão prontas para lavar roupa ou carregar água, enquanto a vida desperta lentamente.
Rosa, a filha de Titina, é uma professora de oração, respeitada e admirada por todos. Com um pequeno espelho, arranja-se cuidadosamente todas as manhãs, e, antes de sair, envolve-se no xale bordado pela sua mãe. Mesmo numa vida aparentemente tranquila, Rosa enfrenta desafios. Foi raptada por Xiboninho, um forasteiro misterioso, mas regressou em segurança graças ao amor da sua família e ao apoio da comunidade, mantendo a sua fé inabalável.
Sabuna, o guardador de galinhas e marido de Titina, é um homem de princípios sólidos e coração bondoso. Diariamente, cuida das galinhas com dedicação, usando um cesto de vime para recolher os ovos frescos. O irmão de criação de Sabuna, também chamado Guardador de Galinhas, casou-se recentemente com uma anciã de 90 anos, dona de uma grande quantidade de gado. A sua intenção era herdar os animais após a morte da velha senhora, mas uma praga devastadora varreu a fazenda, matando todo o gado.
Num dia de céu límpido, Sabuna encontrou o seu irmão a andar de mãos dadas com a idosa e, intrigado, perguntou:
– Por que andas de mãos dadas com a velha senhora?
O Guardador de Galinhas olhou para ele com uma tristeza resignada e respondeu com um sorriso melancólico:
– Foi a herança que o casamento e as alimarias me deixaram.
por: Mario Loff
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