Homens livres não existem neste mundo. Só aqueles que se curvam e os que obrigam a curvatura.
Marionetas do Abismo
No ano fatídico em que Heathcliff ascendeu ao poder, a cidade, que antes respirava com a leveza das promessas da esperança, começou a se envenenar lentamente com uma atmosfera densa, opressiva, como se o próprio ar tivesse sido impregnado pela corrupção que transbordava de todos os cantos. E foi nesse cenário de putrefação moral que surgiu uma figura insólita, uma presença dissonante, que mais parecia uma extensão física daquele novo tempo desolado: um homem franzino, com os olhos que, mais do que observar, pareciam penetrar nas profundezas da alma humana, e um sorriso que se situava na interseção entre o cinismo mais calculado e a insanidade irremediável. Sua postura era a de uma aparição, uma entidade estranha e desconcertante que se arrastava pelas ruas como uma serpente manca, desdenhosa e indiferente ao olhar curioso ou ao desprezo da multidão que o cercava. No entanto, havia algo nele que não apenas retumbava com o espírito mórbido do lugar, como se ele não fosse apenas um mero espectador, mas sim uma engrenagem crucial, inevitável, na máquina depravada e insensível do regime que começava a dominar a cidade.
Diante da imponente igreja matriz, o homem começava sua procissão diária, como se fosse um ritual macabro que ele próprio encenava, marcando o início de sua jornada de humilhação e insubordinação. Parava em frente ao templo com uma teatralidade grotesca, traçando o sinal da cruz de forma exagerada, mas, ao invés de buscar o sublime ou o espiritual, seu gesto provinha um desprezo profundo, uma afronta à própria ideia de fé. E, logo em seguida, com um gesto desconcertante, despia-se parcialmente, exibindo a magreza de seu corpo ressecado ao santo impassível que o observava do interior da igreja. Com uma voz carregada de desdém e zombaria, ele proferia palavras que soavam como uma provocação, um desafio: "Tomem no ku!" Era um gesto que não expressava, como seria de se esperar, devoção ou fé, mas um desprezo absoluto pela moralidade e pelos valores da cidade, um sacrilégio erguido como um monumento ao desespero de um povo que já se via despojado de suas últimas reservas de dignidade.
E, como se fosse uma condenação, ele continuava, com sua voz carregada de veneno: "Estão armados em democratas, todos vocês, mas não passam de papéis vazios, folhas que o vento leva." Suas palavras reverberavam como estocadas afiadas na alma da cidade, que outrora tinha seus pilares sustentados pela ética e pelo respeito, agora enfraquecidos e desfeitos, como ruínas de um império que já não se lembra de seus tempos de glória. As senhoras da praça, aquelas mulheres que, antes, representavam o coro moral, o bastião da decência e da honra na cidade, estavam agora paralisadas, testemunhas involuntárias de uma cena que lhes causava um terror profundo. Seus rostos, envelhecidos pelo peso de uma vida marcada pela luta e pela resistência, se contorciam em gestos de repúdio, enquanto seus lábios, apertados em lenços, mal conseguiam esconder as palavras de reprovação que borbulhavam, abafadas, em seus corações. Porém, embora seus olhares queimassem com o fogo da indignação, não havia ali, naquele momento, força suficiente para desafiar aquele homem. Ele era mais do que um transgressor comum; ele era a personificação da decadência daquele novo mundo que se erguia, e elas, com todo o seu peso de vida vivida, estavam impotentes diante da monstruosidade que presenciavam.
O homem continuava sua jornada de provocação, de escárnio, ciente de que suas ações não eram apenas uma afronta a um templo de pedra, mas uma escarra violenta na face de toda a sociedade que havia se acovardado, se rendido. Cada gesto seu era um grito de guerra contra os vestígios de moralidade que ainda restavam, e ele sabia que, naquele momento, as senhoras da praça e o guarda que as vigiava, assim como todos os habitantes da cidade, já estavam perdidos, incapazes de se levantar contra a maré de imundície que se aproximava. E, assim, ele continuava, impune, sua marcha solitária rumo ao coração podre de uma cidade que havia sido condenada pela própria negligência de seus filhos.
— Este sujeito é o espelho da decadência — resmungava o guarda da praça, enquanto ajustava o boné, seus olhos fixos no espetáculo grotesco.
— Decadência é o que nos resta quando se troca a verdade por um pedaço de poder — murmurava dona Constantina, a mais velha das senhoras, com um tom de resignação amarga.
Mas o estranho parecia intocável, como se soubesse que sua canalhice era não apenas tolerada, mas até desejada por aqueles que governavam. Foi por isso que, ao quinto dia, quando finalmente foi levado à Câmara Municipal para "prestar contas", não houve espanto ao vê-lo recebido pessoalmente pelo presidente Heathcliff.
Dentro do gabinete, o ar era espesso, saturado pelo odor de papéis mofados e cigarros mal apagados. Heathcliff, recostado em sua cadeira de couro gasto, observava o homem com um sorriso que misturava desprezo e curiosidade.
O ato de Armindo Tavares repetiu-se quatro vezes, sempre no mesmo horário, como um ritual profano destinado a corroer a paciência e o decoro da cidade. No quinto dia, o guarda da praça, já saturado pela afronta, decidiu pôr um fim ao espetáculo. Acionou a polícia municipal com a certeza de que aquele homem receberia a punição devida. Contudo, o que se seguiu foi uma inversão da expectativa: Armindo não foi levado a uma cela, mas conduzido à Câmara Municipal, onde seria recebido pelo próprio presidente Heathcliff.
A notícia espalhou-se rapidamente, e a praça, já acostumada às discussões fervorosas das senhoras idosas, tornou-se palco de murmúrios perplexos.
— Não acredito que o senhor presidente vá perder tempo com um homem desses! — exclamou o guarda, os olhos arregalados em indignação.
— Um estranho, de aparência tão repugnante, ainda por cima? — ecoou dona Luce, ajeitando o lenço surrado na cabeça.
— Um depravado sem escrúpulos! — sentenciou dona Constantina, sua voz pesada com a gravidade dos anos.
— Hoje em dia, o desrespeito virou regra. O mundo está de cabeça para baixo. — disse Amélia, cruzando os braços com firmeza.
— Eles se atraem, Amélia. Homens vitimistas, cheios de artimanhas, são como imãs. — arrematou Vera Lúcia, num tom de reprovação impregnado de amargura.
Diante do edifício municipal, o grupo observava com incredulidade enquanto Armindo, magro, andrajoso, mas com ares de quem sabia mais do que demonstrava, atravessava a porta principal escoltado por dois policiais. As senhoras levaram as mãos à boca, tentando reprimir o espanto. Mas no meio das palavras sussurradas, surgiu uma percepção desconfortável: algo naquela cena fazia sentido de um modo perverso, como se o grotesco de Armindo e a ambição de Heathcliff fossem peças do mesmo quebra-cabeça corrompido.
Dentro da Câmara, o ambiente refletia a essência do regime de Heathcliff: uma austeridade falsa, adornada com lustres antigos que escondiam o mofo nas paredes. O presidente, recostado em sua cadeira, observou Armindo com um sorriso tão artificial quanto suas promessas de campanha.
— Provavelmente já sabes quem sou. Sou Heathcliff. — disse o presidente, com uma voz que buscava soar imponente, mas carregava um subtexto de insinceridade.
— Armindo Tavares, eu.
Armindo, sem pressa, respondeu, mas continuou a falar com um sorriso enigmático:
— O último homem que conheci com este nome era cruel, vingativo. Um espírito atormentado pela sede de retribuição, incapaz de perdoar.
Heathcliff inclinou-se ligeiramente para frente, interessado, mas também incomodado.
— E onde o conheceste?
— No Morro dos Ventos Uivantes. Conheces? — provocou Armindo, olhando diretamente nos olhos do presidente.
— Não faço ideia do que falas. — respondeu Heathcliff, com um riso curto e falso, desviando o olhar como quem deseja mudar de assunto.
— Diga-me, Armindo Tavares, o que te faz tão peculiar? — começou Heathcliff, com a voz baixa, quase serpenteante.
— Talvez a mesma coisa que te faz presidente, senhor: a habilidade de irritar quem se acha virtuoso. — respondeu Armindo, sem hesitar, o tom carregado de ironia.
Heathcliff riu, mas era um riso vazio, como o som de metal oco.
— Boa resposta. Sabe, na minha equipe, eu aprecio aqueles que entendem a natureza da podridão. Somos todos sombras aqui, Armindo. Alguns escondem, outros mostram. Você mostra. É por isso que está aqui.
— Sombras que se alimentam umas das outras. — Murmurou Armindo, olhando em volta para os outros presentes.
O presidente acenou para os homens que o cercavam.
— Este é Duarte. Ele vigia os bares, caçando murmúrios contra mim. Ali está o Capataz, especialista em observar o comportamento dos miseráveis da praça. E Cardosinho Feio, um poeta das mentiras: transforma boatos em escândalos com a maestria de um artesão. Você, Armindo, é o que faltava. Alguém que provoca os fracos e os faz tremer com um simples gesto.
— E o que ganharei em troca? — Armindo perguntou, erguendo uma sobrancelha.
— Proteção. Cuidado. E o mais importante: poder. Aqui, Armindo, todos nós somos cúmplices de algo maior do que nós mesmos. Não é isso que você deseja? Ser mais do que um homem magricela que exibe sua nudez para senhoras encolhidas?
Armindo hesitou. Por um momento, parecia que algo dentro dele se debatia contra a oferta. Mas então seus olhos encontraram os de Heathcliff, e ele compreendeu. Ali não havia escolha, apenas aceitação.
— Serei teu porco, senhor presidente. Teu porco fiel. — respondeu, curvando-se ligeiramente.
Heathcliff sorriu, um sorriso que parecia devorar a sala inteira.
— É assim que deve ser, Armindo. Aqui, somos todos partes de uma engrenagem maior. Uns observam, outros obedecem, e todos juntos esmagamos aqueles que ousam se erguer contra nós. Porque neste mundo, o poder não é dos justos, mas dos audaciosos.
E assim, enquanto o sol se punha lá fora, tingindo a cidade de um vermelho sangrento, dentro daquela sala conspiravam homens que haviam trocado suas almas por um lugar na sombra de um império de lama.
II
Do lado de fora, as senhoras da praça e o guarda ainda observavam, seus rostos carregados de incredulidade. Lá dentro, no entanto, selava-se mais do que um acordo. Era uma aliança entre o grotesco e o poder, um reflexo sombrio da corrupção que consumia a cidade.
O pacto estava fechado. Armindo, com os ombros curvados pelo peso da humilhação e da necessidade, agora fazia parte da maquinaria imunda que governava a cidade. Seus olhos, antes aquecidos pela raiva, estavam agora enfraquecidos, mas com um brilho perverso de quem aceita sua própria decadência. Era o "fiel porco", como Heathcliff o chamara, e seu novo papel estava selado na lama da corrupção.
Lá fora, na praça, o silêncio pairava sobre as senhoras e o guarda da praça. Os velhos olhos das mulheres, agora mais alertas que nunca, fitavam o homem que, com sua desfaçatez e desprezo, se unira ao poder corrupto. A indignação crescia como um fogo lento, prestes a consumir tudo. O cheiro de traição impregnava o ar. A cidade sentia em suas entranhas a transformação daquele momento fatídico, mas não havia mais espaço para a esperança. Era a morte de uma cidade, a morte de um povo, entregue ao monstro da desilusão.
As palavras de Vera Lúcia, tão vazias em um passado recente, agora ressoavam como um grito abafado e desesperado: "Os tempos realmente pertenciam aos tolos e aos depravados, e eles se atraíam como sombras ao anoitecer." E à medida que o sol se punha, o pacto tornava-se a pedra de um cemitério maldito, onde os mortos da moralidade e da justiça eram enterrados sob a mesma terra que agora cobria o corpo da cidade. No entanto, o que parecia ser uma simples troca de favores logo se transformaria em algo mais. Os meses seguintes eram uma sucessão de traições e intrigas, com Armindo agora infiltrado no tecido podre do poder, destruindo o que restava de dignidade na praça e nas ruas. As senhoras observavam com crescente repulsa, mas a indignação delas não mais alterava o curso do horror que tomava a cidade.
O primeiro assassinato foi uma obra meticulosa de terror, planejada por mãos frias e mentes perversas. O Capataz, com seu olhar glacial e sua presença que exalava controle absoluto, recebeu a ordem direta de silenciar o comerciante que ousara desafiar Heathcliff. Naquela noite sem lua, os passos, pelas ruas desertas, enquanto o comerciante, acorrentado, era levado ao beco mais sombrio da cidade.
Ali, o Capataz se aproximou com a calma de um carrasco que já perdera qualquer resquício de compaixão. A lâmina em sua mão reluzia à fraca luz de um poste, mas o brilho mais assustador vinha de seus olhos.
— Dizes que és um homem livre, não é? — provocou o Capataz, com a voz cortante como uma lâmina.
— Sou um homem, ao menos... — respondeu o comerciante, entre gemidos, sua voz embargada pelo medo.
— Homens livres não existem neste mundo. Só aqueles que se curvam e os que obrigam a curvatura. E tu escolheste mal o teu lado.
Com movimentos calculados, o Capataz iniciou sua obra de horror. A cada golpe, o comerciante gritava, mas os gritos eram abafados pelos becos, como se até a cidade tivesse medo de ouvir. Quando enfim o silêncio caiu, o corpo foi deixado pendurado, como um macabro estandarte. No peito, um bilhete ensanguentado dizia: "A liberdade custa caro demais."
O segundo assassinato foi ainda mais cruel em sua intenção e execução. Desta vez, o alvo era um jornalista, um homem cujo maior crime fora imprimir a verdade em páginas que corriam clandestinas. Ele sabia que o perigo rondava, mas jamais imaginou que o horror o alcançaria à plena luz do dia.
Na praça central, enquanto as crianças brincavam e as senhoras comentavam as tragédias do cotidiano, o jornalista foi jogado ao chão por mãos invisíveis. O Capataz e Armindo, agora cúmplices, o cercaram. O Capataz, sempre eloquente em sua crueldade, aproximou-se:
— É coragem ou estupidez, jornalista? Expor nossas fraquezas é perigoso.
— Fraquezas? A verdade não é uma fraqueza, é uma arma! — respondeu o jornalista, cuspindo sangue e palavras, sua voz uma mistura de desafio e desespero.
— Uma arma que não sabes manejar. Mas deixa-me mostrar-te a força do silêncio.
O Capataz então entregou a faca a Armindo, que hesitou.
— Não posso... eu... — murmurou Armindo, tremendo, suas mãos já manchadas pelos atos anteriores, mas ainda resistindo a esse novo horror.
— Não és um espectador, Armindo. És parte desta história. Ou te tornas algo maior, ou serás apenas um peão descartável.
Com essas palavras, Armindo desferiu o golpe final, um ato lento, como se cada movimento arrastasse consigo os últimos resquícios de humanidade que ainda lhe restavam. Quando o jornalista finalmente tombou, o sangue que escorria pela calçada parecia formar palavras invisíveis, uma última tentativa de gritar uma verdade que jamais seria ouvida.
A cidade, mergulhada em um silêncio fúnebre, começava a perceber a profundidade do abismo em que se encontrava. Armindo, agora totalmente deformado pela violência que o consumira, vagava como um fantasma pelas ruas. Seu olhar, antes cínico, agora era o de alguém que havia cruzado o limiar do desespero. Ele encontrava o Capataz em encontros sombrios, nos quais ambos trocavam diálogos carregados de cinismo e filosofia.
— Dói, não dói, Armindo? O peso do sangue nas mãos? — provocava o Capataz, enquanto afiava sua faca, o som metálico cortando o silêncio.
— Não sei mais o que dói... se é o sangue, ou a alma que não reconheço. — respondeu Armindo, sua voz carregada de um cansaço infinito.
— Alma? Homens como nós já não têm alma. Somos as sombras de Heathcliff, instrumentos que fazem o que é necessário.
— E quando ele não precisar mais de nós? — questionou Armindo, olhando para o vazio.
— Então seremos como eles: pendurados, mutilados, esquecidos.
O horror era um ciclo, e Armindo sabia que o próximo nome na lista poderia ser o seu. A cada assassinato, a cidade morria um pouco mais, e o poder de Heathcliff se enraizava, alimentando-se das vidas e esperanças que ele e seus asseclas destruíam sem piedade.
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