No coração de Tarrafal, uma celebração vibrante toma forma, entrelaçando as ricas tradições cabo-verdianas com profundas reflexões poéticas.
dia 6
"Caipirinha" é um cabo-verdiano que atravessa os séculos, mas, ao conceber essa ideia tão miscigenada, a escritora Semedo encontrou-se profundamente enraizada na filosofia cabo-verdiana, na terra de Santo Amaro, sempre observada, à distância, o grupo dos mais velhos, que a ouvem em suas divagações poéticas.
– Não sentes medo de proferir tais coisas na nossa presença? – perguntou José.
– Não é para sentir medo mesmo – respondeu Kaka, com prazer em provocar José.
– Tu não entendes, não proferes uma palavra de valor à tua frente.
– E tu és Zeus?
– Não, não senhor, sou mais do que Deus, assim é melhor.
– Que arrogância! – afirmou Natacha, abandonando a sala, seguida pelas outras moças, deixando os homens sozinhos.
– É preciso estar aquecido e não esfriar nunca. Andréia e Semedo, não pensem que já fizeram algo significativo, os olhos devem arder.
Elas apenas sorriram e se foram.
– É outra geração, se tivessem nascido na tua época, escreveriam sobre o caos de então, que tu não escreveste.
– Cala-te, Kaka, provavelmente não leste o que escrevi sobre vocês. Esses novos devem saber o que fazeram nos verões literários passados.
Reinou uma certa paz entre os dois enquanto o tempo passava, e a sala permaneceu vazia o suficiente para que discordassem. Era como se a discórdia fosse tão imensa que precisasse de um espaço vazio para reinar. Mas a diferença entre os dois poetas era descomunal, cada um à sua maneira, iguais na rebeldia e terríveis na resistência.
– Poderíamos ser um país, mas nunca concordaremos nisso.
– Nunca. Eu não sou o país, sou o mundo.
– Aposto que querias dizer que és um preto arrogante?
– Um preto de maus bofes com humor afiado, não que esteja à procura de sarna, mas a sarna sempre me encontra.
Com a última fala, silenciaram-se, e a paz reinou, quase que a sala diminuiu em si mesma. Ficaram apenas duas luzes acesas, iluminando seus rostos enquanto se encaravam, e o barulho vinha de outro compartimento enquanto tomavam sopa de pedra. Então, Kaka resolveu juntar-se a Mário de Sousa Mendes, Zelda e Princezito, deixando José sozinho na penumbra daquela sala.
Os jovens estavam dispersos na azaranha guiada por Mário, enquanto percorriam a estrada de basalto. As plantas coloniais acenavam num estilo pré-histórico, emanando um cheiro de massapê e terra seca dos antigos carnavais com máscaras de um Tarrafal antiquíssimo. Passaram pela pedreira, onde homens brancos estendiam as mãos, outros, de nome Bramane, fizeram-no lembrar de sua passagem pela Índia. Confessou a si mesmo se um dia um preto de bons bofes sairia do interior do mundo para chegar à Índia, para cantar e encantar os indianos tão diversificados.
A praça estava brilhante, com luzes amarelas e brancas perturbadas por grandes abelhas que se confundiam com as estrelas da azaranha. Elas brilhavam, e as moças achavam o ambiente lindíssimo e misterioso. Semedo, a mais nova, foi encarregada de bater na porta do bar Spedju enquanto o motor da azaranha debatia num som ofegante. O senhor Ferrutxiu acelerou, e a luz no quarto acendeu-se. Na rua, as figuras da cidade emergiam: professores universitários e grandes varredores de rua. A dona do Spedju, ao acordar irritada, acalmou-se ao reconhecer alguns dos presentes, embora outros lhe fossem desconhecidos e muito antigos. Pegou seu gato preto e desceu do piso superior para abrir a porta.
– O que querem a estas horas, meninos?
– Dar continuidade à festa.
– Que festa?
– Na terra de Santo Amaro.
Ao ouvir o nome do santo, ela benzeu-se.
– Não mencionem o nome do homem em vão. Ele é muito rancoroso. Fazer paródia em seu nome é uma decadência moral.
– Os escritores à noite seguram a moral no regaço da noite e tornam-se grandes cafajestes – disse um homem de bigode fino, magro, ao fundo da azaranha, observando o gato da dona do Spedju.
– É um gato preto? Hein, é um gato preto?
Mário notou o trauma do homem ao ver o gato e lhe recomendou uma bebida forte.
– Vem tomar algo forte, como se fosse uma ideia que bebes.
– Andaste a ler meus escritos, e a Berenice?
– Todos nós lemos algo.
A noite já passava da uma da madrugada. Alguns jovens já se haviam despedido, mas Eurídice Monteiro, que chegara para inaugurar o busto da Bibinha, procurava alguém, esfregando os olhos pela sala, enquanto a dona do estabelecimento a observava demoradamente.
– Senhora, o que procura?
– Procuro Dina. Trouxe-lhe as sapatilhas para trocar pelos saltos altos.
– Ela foi embora depois da meia-noite, descendo os degraus da escada.
– Deixaram-na sozinha a descer pela vida inteira e ainda querem que esteja aqui? – respondeu Natacha.
– Acho que a idade a acompanha pela superioridade da maturidade que ela tem.
– Bem, se já o dizes – respondeu Zelda, abrindo caminho com o príncipe por perto e Fitzgerald explodindo de raiva.
Trouxeram um espelho ao centro da sala pelas mãos de Hemingway.
– Vamos jogar e conviver com a melhor época literária que já houve? Alguém pede ao espelho, ele nos apresenta a época, e nós entramos em uma viagem interestelar.
– O que acham?
– Eu não – respondeu a maioria na sala, achando arriscado ir a um lugar sem poder voltar, pelas mãos de um escritor radical e já falecido.
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